Encontro de juízes põe em pauta a Idade Média

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Um período da História profundamente injustiçado pelos críticos menos bem informados. Esse foi o tom do encontro promovido na manhã desta sexta-feira, 3/8, pela Escola da Magistratura da Justiça do Trabalho da 15ª Região (Ematra XV) e pela Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 15ª Região (Amatra 15), para discutir uma época que costuma ser descrita como "a era das trevas". Partindo do tema "Trabalho e outros aspectos da vida na Idade Média", o juiz do Trabalho Gerson Lacerda Pistori, da 5ª Turma do TRT da 15ª, e o professor doutor João Francisco Regis de Morais se dedicaram, em pouco mais de hora e meia de explanação, a desmitificar a imagem que a maioria das pessoas tem do período medieval.

Cerca de 45 magistrados participaram do evento, realizado, em formato de "café da manhã", no Espaço Cultural do Tribunal, no 1º andar do edifício-sede, em Campinas. Entre os presentes estavam o presidente e o vice-presidente judicial da Corte, juízes Luiz Carlos de Araújo e Renato Buratto, o diretor da Ematra XV, juiz Flavio Allegretti de Campos Cooper, e a presidente da Amatra 15, juíza Ana Paula Pellegrina Lockmann.

Complexidade

Autor do livro "História do Direito do Trabalho – Um Breve Olhar Sobre a Idade Média", lançado pela editora LTR em junho deste ano, o juiz Gerson Lacerda Pistori é mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Em primeiro lugar, o magistrado expressou seu sentimento de honra por dividir a condição de palestrante com o professor Regis de Morais, a quem classificou como "um dos grandes intelectuais do País". Vindo de uma formação inicialmente protestante, passando depois pela escola pública laica para desembocar finalmente no Marxismo, "eu tinha tudo para não gostar da Idade Média", afirmou o juiz. No entanto, acabou se apaixonando por esse período, que considera "uma das épocas mais complexas da História, quando, entre outras coisas, foram aperfeiçoados os processos de extração do vinho e produção da cerveja", brincou o magistrado, dono de reconhecido e refinado talento para fazer humor.

Para o juiz Gerson, a era medieval marca uma fase do trabalho humano livre não valorizada pela História do Direito do Trabalho, mas que apresenta as bases da relação trabalhista verificada após a Revolução Industrial. Nos primeiros séculos da Idade Média, explica o magistrado, as cidades estavam esvaziadas. Roma, que chegara a ter cerca de um milhão de habitantes no auge do Império, viu sua população se reduzir a 1/10 disso, entre os Séculos VI e VII. Até o Século XI, praticamente não havia o trabalho livre. A força de trabalho se traduzia fundamentalmente em servos e escravos. Nessa época, no entanto, começa a se intensificar em pequenas cidades a atividade comercial. Por volta do Século XII surgem as corporações de ofício, espécie de cooperativas que reuniam profissionais do mesmo ramo, complementou o palestrante.

Mito

Formado em Filosofia pela PUC de Campinas, o professor Regis de Morais é doutor em Filosofia da Educação e livre-docente pela Universidade de Campinas (Unicamp). Autor de 43 livros, o professor desmentiu inicialmente o mito de que a era medieval esteve sempre condenada a um ritmo monocórdico. "Longe de ser uma era inteiriça, a Idade Média experimentou vários ‘clarões renascentistas’", definiu o palestrante, ressaltando a criatividade medieval em áreas como a Arquitetura, a Arte e a Filosofia, criatividade essa concretizada, por exemplo, em numerosas e magníficas construções, em especial catedrais e castelos, que, atualmente, são objeto de admiração de pessoas do mundo inteiro. "A Catedral de Notre Dame, magnífica construção medieval, supera muito o Museu do Louvre em visitação", exemplificou Regis de Morais. Ele adverte que é preciso eliminar o preconceito em relação à Idade Média, um mito em grande parte alimentado pelo Iluminismo, a chamada "Idade das Luzes", donde acabou sendo cunhada a expressão "Idade das Trevas" para se definir o período medievo.

No trecho que intitulou de "Em que somos filhos diretos da Idade Média", Regis de Morais mostrou um pouco do quanto a Idade Moderna deve à sua antecessora e no que a imita. "Os livros, na forma como os conhecemos, são fruto dessa época", celebrou o leitor apaixonado, mencionando ainda vários outros legados medievais, como os óculos, o papel de celulose - passível de ser produzido em abundância -, relógios mecânicos e, doce ironia, as universidades, um dos maiores símbolos da sabedoria contemporânea. A invenção do garfo e do hábito de sentar-se à mesa para comer tornou possível ao homem a chance de se alimentar com dignidade. Os vidros nas janelas trouxeram primeiro a proteção do frio, em regiões onde baixíssimas temperaturas eram fenômeno comum, para depois brindar a visão humana com a beleza dos vitrais das catedrais góticas. Por sua vez as chaminés possibilitaram levar a cozinha para dentro de casa, significando mais uma proteção contra o frio, em especial para as mulheres, mas também para toda a família, que passou a dispor de uma lareira para se aquecer. O celebrado jogo de xadrez - sinônimo de inteligência -, o baralho, os moinhos d’água e de vento, os cartórios e notários também são criações medievais, relaciona o professor. Da mesma forma a bússola e o timão, que permitiriam mais tarde as Grandes Navegações, e os botões, hoje prosaicos, mas que na época significaram "uma verdadeira revolução no vestuário, pondo fim a toscos laços e nós e concedendo à mulher e ao homem muito mais elegância", descreveu o palestrante. Por fim, o Carnaval, a própria tradução da alegria e da espontaneidade no mundo atual, sobretudo no Brasil, também é filho da "Idade das Trevas", provocou Regis de Morais. Na Filosofia o avanço não é menor, com Santo Agostinho, São Gerônimo, São Tomás de Aquino e Abelardo, relembrou o professor.

Trabalho medieval

Após a queda de Augusto, último Imperador Romano, no Século V, ensina Regis de Morais, a Europa é varrida por sucessivas invasões de francos, germanos, mongóis e outros povos. A constante fuga das invasões torna precário o enraizamento das populações européias, explica o professor. Ocorre uma redução das áreas cultivadas. Em busca de segurança, as pessoas abandonam as cidades e procuram se fixar em torno de senhores que possam lhes oferecer alguma proteção. O trabalho passa a se desenvolver basicamente nos castelos ou em volta deles, em geral em troca de comida e lenha, artigo importante contra um inimigo cruel, o frio.

Aos poucos começa a ser praticado o arrendamento de terras, com a divisão da produção entre o servo arrendatário e o senhor, que em geral fica com a maior parte. Alguns servos, no entanto, conseguem até um acordo de meação. Dá-se, assim, progressivamente, um processo de formação de uma classe de trabalhadores livres, que inclui também indivíduos como artesãos corporativos e armeiros - soldados que compunham a força de defesa dos senhores feudais. A partir do Século XI, com os primeiros passos da Revolução Comercial, que iria marcar a transição do feudalismo para o capitalismo, floresce também a figura do mercador, protagonista do que o professor chama de proto-capitalismo e que iria dar origem à histórica figura do burguês.

A exemplo do historiador Giuseppe Sergi, o professor Regis de Morais acredita que a Idade Média tem sido injustiçada através dos tempos por conta de uma visão obtusa que se formou a partir de uma perspectiva limitada, que julgou todo o período medieval com base apenas no Século XIV, marcado por um cenário apocalíptico, dominado por pestes que vitimaram milhões de pessoas na Europa. "Segundo Sergi, a mente humana tem uma tendência natural à perspectiva", esclarece Morais. Nas palavras do historiador italiano, ao olhar para o passado, o homem "vê em primeiro lugar o mais próximo, em seguida o passado mais recente, e imagina espontaneamente todos os séculos mais anteriores como semelhantes a esse passado recente, mas não é seguro que seja assim: com freqüência, o passado mais distante foi melhor do que o passado próximo". Dessa forma, acabou sendo consagrado o discurso que desprezou toda a riqueza histórica de nada menos do que seis séculos, do VIII ao XIII, e tomou o feudalismo original pela exploradora relação de vassalismo que acabaria caracterizando, aos olhos do senso comum, a era medieval.

Para o diretor da Ematra XV, juiz Flavio Allegretti de Campos Cooper, em comentário ao encerrar o evento, "para aqueles que consideram a Idade Média como a noite da existência do homem, o professor Regis de Morais conseguiu mostrar que a noite é parte importante de nossa vida; muita coisa boa acontece à noite, inclusive o brilho das estrelas", enfatizou o magistrado.

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