Professor da Unicamp discorre sobre a preservação da memória da JT
Juízes e servidores lotaram o auditório do 1º andar do edifício-sede do TRT 15ª, em Campinas, na manhã do dia 27 de junho, para assistir à palestra "O Passado é Urgente: Preservando a Documentação da Justiça do Trabalho", proferida pelo pesquisador Fernando Teixeira da Silva, professor do Departamento de História da Unicamp. O palestrante, que também é diretor adjunto do Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp, é autor de vários trabalhos sobre a história da Justiça do Trabalho no Brasil. A palestra, promovida pela Escola da Magistratura da 15ª Região (Ematra), foi transmitida ao vivo pela extranet para 22 Varas do Trabalho, distribuídas em diferentes localidades do interior do Estado de São Paulo. A iniciativa, de caráter experimental, permitiu que aproximadamente 80 pessoas, entre servidores e juízes, assistissem ao evento, em tempo real, sem o seu deslocamento físico até Campinas.
Compuseram a mesa coordenadora do evento o diretor da Ematra, juiz Flavio Allegretti de Campos Cooper, o juiz José Pitas, presidente da Comissão para Estudos de Critérios de Preservação da Memória da Justiça do Trabalho, as juízas Irene Araium Luz e Olga Aida Joaquim Gomieri, respectivamente ex- presidente e integrante da Comissão, a servidora Regina Célia Ramires Chiminazzo, diretora da Secretaria Judiciária do Tribunal e membro da Comissão Permanente de Avaliação de Documentos, além da magistrada Vera Teresa Martins Crespo, da 8ª Câmara do Tribunal.
A palestra centrou-se na importância dos documentos do Judiciário para a reconstituição histórica de processos sociais, econômicos e culturais, e sobre a forma mais adequada e segura de promover a guarda e preservação de acervos que o professor considera valiosos para a memória do País.
Teixeira da Silva lembrou que, durante muitos anos, vigorou no Brasil uma cultura do desprestígio dos documentos da Justiça, vistos como não tendo nenhum valor histórico, por tratarem, segundo os críticos, apenas de causas pessoais e prosaicas. Só nos anos 1970 os processos judiciais passaram a ser valorizados pelos historiadores, inicialmente os processos criminais.
O interesse dos pesquisadores pelos documentos da Justiça do Trabalho data, segundo o palestrante, do final dos anos 1980, momento em que se verifica uma democratização do acesso a essa justiça especializada, que resultou em um crescimento espetacular do número de litígios trabalhistas. Paradoxalmente, afirmou, a Justiça do Trabalho tornou-se objeto de análise das ciências humanas justo no momento em que o Congresso Nacional aprovava a Lei 7.627, de 1987, que regulamentou a incineração dos processos trabalhistas cinco anos após o seu arquivamento. Essa situação seria amenizada pela aprovação, em 1991, da Lei 8.159, que estabelece o dever do Poder Público de preservar documentos que sejam relevantes para o desenvolvimento cultural e científico do País.
A riqueza dos documentos produzidos pelo Judiciário, em especial pela Justiça do Trabalho, e sua importância para o historiador são muito maiores do que se imagina, assegurou o palestrante. Por meio deles é possível ter acesso à fala dos trabalhadores, reconstituir as expectativas dos litigantes, seus sentimentos de recompensa ou frustração com os resultados alcançados. Os processos permitem, sobretudo, recompor o cotidiano nos locais de trabalho, as mobilizações coletivas ocorridas, as relações de gênero, o relacionamento entre trabalhadores, Estado, empresários e a Justiça no Brasil.
Para o professor, a preservação desses documentos, que considera um patrimônio da sociedade, requer a conscientização dos gestores públicos sobre sua real relevância e a definição de propostas de gestão documental que incluam parcerias com as universidades e centros de pesquisa. Um passo decisivo nesse sentido, afirmou, tem sido a ampliação do diálogo entre historiadores e juristas, mediante a realização de encontros para a discussão de possíveis soluções para o acúmulo de papel no Judiciário. Teixeira da Silva ressaltou, também, a importância da pressão da sociedade para salvar a memória do País, citando o exemplo de Jundiaí, onde a população se mobilizou para impedir a destruição de processos trabalhistas finalizados, conseguindo que fossem transferidos para o museu da cidade. Hoje esse acervo encontra-se sob os cuidados do Centro de Memória, Arquivo e Cultura do TRT da 15ª, o qual, segundo o palestrante, desenvolve um trabalho valioso de preservação documental. “Não há nada semelhante no País, em termos de espaço disponível, de organização, de seriedade do trabalho desenvolvido para facilitar o acesso às fontes”, afirmou.
De acordo com o professor, uma das controvérsias sempre presentes na hora de se formular políticas públicas de preservação documental diz respeito ao que deve ser preservado. O Conselho Nacional de Arquivos propõe o estabelecimento de uma política para a guarda de documentos importantes para prova, informação e pesquisa, mas – questionou ele –, como definir o que é importante?
Segundo o palestrante, a preservação integral de todos os documentos, embora considerada por muitos como o ideal, é, incontestavelmente, uma meta irrealizável. Além dos custos proibitivos, a idéia de tudo reter pode implicar a perda de tudo, afirmou, referindo-se ao sonho da construção da Biblioteca de Alexandria. Outra proposta corrente é assegurar a preservação apenas dos documentos considerados históricos, perspectiva que, segundo ele, resultaria na construção de um museu de curiosidades, de um rol de relíquias. Esta seria, a seu ver, a pior opção, pois um historiador da atualidade não teria como dizer, hoje, o que se tornará histórico amanhã. As perguntas a fazer serão sempre diferentes, a cada geração de historiadores, explicou. Além do que, tal proposta implicaria mutilar o arquivo, ferindo o princípio da integridade das fontes. O mesmo problema inviabilizaria, também, a proposta de se preservar apenas os acórdãos e sentenças judiciais, “como se somente essas partes do processo tivessem valor público”. O processo, advertiu, é um conjunto de documentos indivisível, que não pode ser amputado.
De acordo com o professor, a proposta de gestão de documentos que tem predominado atualmente é a preservação por amostragem sistemática, estratificada e proporcional, por tipo de processo, origem, período e outras variáveis, ou seja, a eliminação de documentos padronizada de maneira objetiva, por critérios matemáticos, estatísticos, baseada no princípio de que quem guarda tudo, não encontra nada. O problema dessa proposta, para Teixeira da Silva, é a pequena proporção de documentos preservados – em muitos casos, apenas 1% do acervo. “O tema do historiador”, adverte, “muitas vezes pode atravessar vários processos, requerer uma grande massa de documentos. Ele pode ter interesse, por exemplo, na análise de processos por empresa, para examinar as diferentes atuações dos empresários, ou por juiz, para a definição de perfis de atuação, ou mesmo por métodos de racionalização do trabalho nas empresas, como forma de reconstituir os processos de gestão nas fábricas num determinado período.” O professor chamou a atenção, também, para o fato de que a amostragem estatística muitas vezes não permite preservar documentos inéditos, excepcionais, peças raras que podem dar acesso a significados históricos importantes.
Tendo em vista as limitações consideradas e as atuais possibilidades tecnológicas, o palestrante defendeu a preservação de todos os processos anteriores a 1988 que escaparam da incineração – uma pequena quantidade, segundo ele –, a ampliação da amostragem – “temos de ser mais generosos com os processos dos anos 1990 e 2000, a última geração do papel” – e a compactação de arquivos por meio da microfilmagem dos processos.
As vantagens desse procedimento, segundo ele, superam em muito as da mera digitalização dos documentos, tanto em termos de durabilidade – um rolo de microfilme dura cerca de 500 anos –, quanto pela segurança, uma vez que o documento digitalizado pode ser manipulado, ao passo que o microfilme é inadulterável, além de ser reproduzível em papel ou em suporte digital, o que permite que o pesquisador leve cópias digitais do documento desejado para casa, reduzindo seu tempo de permanência nos arquivos. Outra objeção levantada é que a reprodução digital é uma tecnologia ainda recente, em constante atualização, o que pode vir a causar problemas no futuro para a leitura de documentos gravados em suportes que são rapidamente ultrapassados. Também do ponto de vista legal e arquivístico, argumentou, a microfilmagem beneficia-se por contar com padrões reconhecidos internacionalmente. Em relação a custos, observou que não há ainda estudos que comprovem a vantagem da microfilmagem, mas acredita que eles não devem ser maiores que os recursos gastos atualmente com o aluguel de galpões ou arquivos para a guarda dos processos.
Por fim, o palestrante reportou-se à controvérsia existente quanto ao que fazer com o documento após a microfilmagem, defendendo a preservação de apenas parte dos processos originais, uma vez que “o importante é a preservação do documento, e não do papel”. Propôs, ainda, a criação de uma central de microfilmagem pelo Judiciário, às suas expensas ou mediante parcerias com as universidades ou arquivos públicos. “Precisamos superar o fetiche do papel, que, nos dias de hoje, tem durabilidade cada vez menor. Como afirmou Guimarães Rosa, o passado é urgente. Microfilmagem é a palavra-chave.”
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