Professor reafirma a importância dos processos como documentos históricos
“Ações Cíveis Envolvendo Escravos no Século XIX” foi o tema do professor Sidney Chalhoub, em palestra proferida na manhã desta segunda-feira, 1°/10, primeiro dia do II Encontro Nacional da Memória da Justiça do Trabalho, no edifício-sede do TRT da 15ª, em Campinas. Mestre pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Chalhoub é Titular do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), instituição pela qual se doutorou e obteve a livre-docência. Entre outras obras, é autor dos livros “Trabalho, lar e botequim: o cotidiano de trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque”, lançado em 2001 pela Editora da Unicamp, e “Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte”, publicação da Companhia das Letras, 1990.
O professor revelou que, nas quase três décadas de carreira como docente, tem recorrido com freqüência ao material que as Justiças Cível, Criminal e Trabalhista têm produzido ao longo da história do País. “O acervo da Justiça do Trabalho é absolutamente indispensável para que, no futuro, muitos aspectos da vida dos trabalhadores brasileiros possam ser contados”, afirmou o historiador, que centrou a palestra nos - segundo classificação sua - primeiros processos trabalhistas do País, as ações cíveis de liberdade movidas por escravos ao longo do Brasil Colônia e do período imperial.
Revogação de liberdade
Mais precisamente, o palestrante se concentrou num libelo civil de revogação de auforria, uma rara ação - muito mais comuns eram os processos em que os escravos requeriam judicialmente a liberdade - do início da segunda metade do Século XIX, em que uma viúva, Inácia Florida Correia, pedia a revogação da liberdade concedida a dois escravos, Joana e Desidério. O processo faz parte do acervo do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, e correu na 2ª Vara Cível da então capital do País. A autora pedia que a liberdade concedida aos dois crioulos - denominação dada à época aos negros já nascidos no Brasil -, fosse anulada, sob a alegação de que eles não estariam cumprindo as condições fixadas para a concessão da auforria. A Desidério, a liberdade fora dada em 19 de setembro de 1851. Quatro dias depois, seria a vez de Joana tornar-se livre. Os dois, no entanto, precisavam cumprir uma condição: continuar servindo à sua antiga senhora enquanto ela permanecesse viva.
De acordo com a autora, os desacertos dos réus após receberem a auforria iam de gestos e palavras ameaçadores até a atitude de saírem de casa e voltarem quando queriam, chegando a ficar dois ou três dias fora. Queriam também, ainda segundo a viúva, andar apenas calçados, atitude de grande simbologia, detalhou o palestrante, uma vez que ostentar um par de calçados aos pés era direito apenas dos negros livres. Na visão do professor Chalhoub, é possível perceber que o processo teve origem, na verdade, nos interesses do filho de Inácia, que perderia o direito de herança sobre os escravos, caso a auforria fosse mantida. A ele a autora concedeu procuração para representá-la na ação, e dele foi o ato de contratar o advogado que atua prol da viúva. Essa auforria condicional, esclareceu o professor, gerou muitas discussões na Justiça ao longo do Século XIX. Por exemplo: de uma escrava liberta, mas que ainda não tivesse cumprido a condição estabelecida para a ratificação da liberdade, seria livre o filho? “A auforria nem sempre é o fim da relação de dependência, cabendo aos escravos, muitas vezes, permanecerem fiéis aos seus ‘antigos’ senhores”, ironizou Chalhoub. Ele ressalta que os processos contribuem para deixar clara uma das características fundamentais da política de dominação dos escravos no Brasil - a prerrogativa senhorial de conceder a liberdade. Ao contrário do que se poderia pensar, em muitos lugares a escravidão era imposta ainda que o dono dos escravos tivesse a vontade de libertá-los. Em vários estados do Sul dos Estados Unidos, por exemplo, era proibido conceder auforria, destaca o palestrante. No Suriname, os senhores de escravos precisavam solicitar a autoridades locais autorização para dar a liberdade a seus negros.
Só com a chamada “Lei do Ventre Livre”, de 28 de setembro de 1871, ficou proibida a revogação de auforria no Brasil, observou Chalhoub. Com a lei, os escravos conquistaram o direito de ir à Justiça para pleitear a liberdade mediante indenização a seus senhores, independentemente da anuência destes. O juiz solicitava a vários avaliadores que estabelecessem o preço do escravo. A seguir, fixava um dos valores apurados como quantia a ser paga ao senhor pelo escravo, em troca da liberdade.
Preservar é preciso
Tomando como exemplo a ação da viúva Inácia contra o casal Desidério e Joana, o professor ressaltou o perigo de se estabelecer critérios como a amostragem para a preservação de documentos. “Depois de tanto tempo, é um milagre poder ler este processo”, celebrou o palestrante, advertindo que, entre cerca de duas centenas de ações de liberdade do Século XIX por ele estudadas, aquela era a única cujo pedido ia no sentido inverso, o do retorno dos réus à escravidão. “Trata-se de um documento de valor inestimável. Imaginem se este processo tivesse sido submetido a um critério de amostragem, em que, por exemplo, a cada cem processos se preserva apenas um”, questiona o professor. “A possibilidade de ele ter sido destruído seria imensa.” A propósito, a auforria de Joana e Desidério foi revogada, findando sua expectativa de liberdade.
Chalhoub chama a atenção para mais um aspecto importante das ações de liberdade e outros processos judiciais que envolveram escravos no Brasil. Esses documentos comprovam que, diferentemente do que pensa o senso comum, os escravos não eram despossuídos de qualquer tipo de atuação política. Várias ações criminais da época, por exemplo, mostram que, ao cometerem um crime contra seu senhor, muitos escravos não fugiam da polícia. Ao contrário, se entregavam a ela, na expectativa de obter do Estado uma interpretação isenta do ocorrido - em outras palavras, um julgamento justo.
Para o professor, é preciso mudar o foco da política de preservação desenvolvida no País. “Ao invés de nos preocuparmos em estabelecer critérios para destruir documentos, é preciso pensar em modos de preservá-los”, defendeu Chalhoub, para quem a extinção de documentos “é um atentado político ao Patrimônio Histórico e à possibilidade de construção de uma sociedade democrática”. “É preciso parar a fogueira”, sentenciou o historiador.
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