Debate acirrado: polêmico, acordo coletivo especial é tema de painel do Congresso do TRT

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Por Luiz Manoel Guimarães

A programação da manhã do primeiro dia do 13º Congresso Nacional de Direito do Trabalho e Processual do Trabalho foi concluída com o 1º painel do programa, que pôs em debate o polêmico Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico, ou simplesmente Acordo Coletivo Especial (ACE), como a proposta ficou conhecida. Com origem no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul, municípios da Região Metropolitana da capital paulista e que formam uma das regiões mais industrializadas do País), o anteprojeto que propõe a legalização do ACE foi entregue pelo ex-presidente da entidade sindical, Sérgio Nobre, em 30 de novembro de 2011, ao ministro Gilberto Carvalho, secretário-geral da Presidência da República, e ao então presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia.

Segundo a entidade sindical, se a proposta de legalização do ACE for aprovada, garantirá "segurança jurídica aos acordos específicos entre sindicato e empresa", fazendo com que "a negociação coletiva seja valorizada e adotada no País como instrumento mais moderno para a solução de conflitos pertinentes às relações de trabalho e à representação sindical no local de trabalho". O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC afirma ainda que o ACE baseia-se em modelo de representação adotado pela entidade "há mais de 30 anos".

Na prática, a aprovação da proposta permitiria flexibilizar a legislação trabalhista brasileira, o que faz do anteprojeto um combustível poderoso para a engrenagem da polêmica. Não por acaso, o tema foi escolhido para pautar logo o 1º painel do Congresso do TRT-15, com a indispensável participação do atual presidente do Sindicato, Rafael Marques da Silva Junior, empregado da Ford, unidade de São Bernardo do Campo, desde 1986. Para debater com o sindicalista foram convidados o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes, professor titular de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, e o juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Ribeirão Preto, Renato Henry Sant'Anna. O painel foi mediado pela desembargadora Tereza Aparecida Asta Gemignani, vice-diretora da Escola Judicial do TRT da 15ª Região.

Tese

"A Constituição Federal de 1988 elevou a negociação coletiva à condição de direito fundamental. Se, por um lado, assim fez valer o preceito contido nas Convenções 98 e 154 da Organização Internacional do Trabalho, por outro, desencadeou uma série de controvérsias. Na era contêmporânea, as rápidas e intensas mudanças provocadas pelos novos modelos de organização produtiva trouxeram novos desafios. Nesse contexto, o exercício da negociação coletiva deve ser ampliado ou limitado? Em relação às jornadas e intervalos para refeição e descanso, quais seriam esses limites? As negociações devem ser permanentes ou devem ocorrer apenas na data-base da categoria? A negociação coletiva deve atuar apenas em conformidade com a lei (secundum legem) e nos vazios legais (praeter legem), ou também podem dispor diferentemente do que estabelecem os marcos legais? Nesse caso, levaria as partes à precarização, ou iria permitir a construção de um novo direito, abrindo outras vias jurídicas para compatibilizar o marco normativo com a realidade fática, cada vez mais complexa e cambiante?" Logo na abertura, a desembargadora Tereza Asta, doutora em Direito do Trabalho pela USP e ocupante da cadeira nº 70 da Academia Nacional de Direito do Trabalho (ANDT), além de apreciadora confessa de debates densos – não por acaso é autora do livro "Direitos Fundamentais e sua aplicação no mundo do trabalho – questões controversas" (2010) –, deu o tom de como seria o painel.

Para começar, a defesa da proposta. Além do Sindicato, Rafael Marques da Silva Junior preside também a Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC (biênio 2013-2015) e é membro do Conselho Nacional do Senai. Em que pese o anteprojeto do ACE ter sido concluído, segundo a própria entidade, após "três anos de debates com representantes de todos os segmentos do mundo do trabalho", Rafael ponderou, logo de início, que não se trata "de uma proposta definitiva".

Ele ressaltou também as dificuldades historicamente enfrentadas pelos metalúrgicos no ABC, em especial pelos empregados das grandes montadoras instaladas em São Bernardo do Campo, sobretudo após o advento do chamado Regime Automotivo Brasileiro (RAB). Instituído pela Medida Provisória 1.024/1995 – convertida, após uma série de reedições, na Lei 9.449, de 1997 –, o Regime provocou, afirma Rafael, a disseminação País afora da indústria do setor (como consequência da guerra fiscal). A própria Ford, lembra o sindicalista, instalou uma unidade em Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador, BA, e fechou a planta de caminhões de São Paulo, capital. "Corríamos o risco de a indústria automotiva do ABC desaparecer, transformando a região numa nova Detroit", comparou o palestrante, numa referência à decadência da cidade-sede da General Motors e da Ford (esta, na verdade, sediada no município de Dearborn, na região metropolitana local). Principal centro produtor de automóveis do mundo ao longo da maior parte do século 20, Detroit experimentou um declínio acentuado nas últimas décadas, vítima do acirramento da concorrência externa – japonesa, sobretudo. "Muita gente apostava na saída da Ford e da Volkswagen de São Bernardo do Campo, por exemplo, mas nós estamos conseguindo manter as principais empresas do setor na cidade", comemorou Rafael.

Apesar do contexto nem sempre favorável, e já fazendo alusão ao Acordo Coletivo Especial, o sindicalista afirmou que o ABC "não é um palco de negociações que precarizam direitos". Ele enumerou as condições, previstas no anteprojeto que propõe a legalização da proposta, necessárias à negociação entre trabalhadores e empregador nos moldes do ACE. "É preciso que a maioria dos empregados da empresa, pelo menos 50% mais um, sejam sindicalizados. Além disso, a aprovação dos itens negociados exige no mínimo 60% de votos favoráveis dos trabalhadores, e o escrutínio deve ser secreto, de forma a impedir qualquer pressão por parte da empresa. Esta, por sua vez, tem de comprovar não ser autora, num determinado período, de práticas antissindicais, como perseguição a dirigentes de sindicatos ou cipeiros [membros da Comissão Interna de Prevenção de Acidente (CIPA)]". Ainda segundo o palestrante, o anteprojeto não abre mão do respeito à Constituição Federal nas negociações.

Rafael citou algumas situações em que metalúrgicos empregados de empresas do ABC, antecipando-se à legalização do ACE, inovaram na negociação com os respectivos empregadores. "A CLT [artigo 396] prevê dois períodos de meia hora cada um, durante a jornada de trabalho, para a trabalhadora amamentar o filho, até que este complete seis meses de idade. Nós constatamos que era um direito de pouca efetividade. Normalmente a trabalhadora mora longe de casa, e não havia condição de o filho ser levado a ela. Negociamos a transformação desse direito no acréscimo de oito dias à licença-maternidade."

Noutro caso, os trabalhadores concordaram em reduzir o intervalo diário para refeição e descanso, de uma hora para 40 minutos, em troca de folga aos sábados, alternados – dispensa num sábado, trabalho no outro –, lembrou o sindicalista. "O acordo incluiu investimentos por parte da empresa no refeitório e foi aprovado por 100% dos trabalhadores envolvidos", sublinhou Rafael.

Num terceiro exemplo, acrescentou o palestrante, em 2001, em meio a uma séria crise que ameaçava provocar um grande número de demissões na empresa, metalúrgicos da Volkswagen concordaram em diminuir a jornada semanal para apenas quatro dias, com a correspondente redução nos salários, como forma de preservar os empregos. Para compensar a perda salarial, ponderou Rafael, a participação nos lucros e resultados (PLR) foi fracionada em 12 vezes e cada fração foi acrescida à remuneração mensal. "Conseguimos manter os salários, em 100%." O sindicalista observou que o acordo foi "denunciado" ao Tribunal Superior do Trabalho, "mas acabou sendo validado, com diferença de um voto, em 2012".

Ele argumentou ainda que todas as negociações nos moldes do Acordo Coletivo Especial têm o acompanhamento do Ministério do Trabalho e Emprego. "O ACE valoriza a negociação, que é tratada por muitos como um palco de precarização e flexibilização, o que não é verdade."

Antítese

Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), mestre em Ciência Política pela Unicamp e doutor em Sociologia pela USP, o sociólogo Ricardo Antunes coordena atualmente as coleções "Mundo do Trabalho", pela Boitempo Editorial, e "Trabalho e Emancipação", pela Editora Expressão Popular. Em relação ao ACE, seu entendimento vai na contramão do de Rafael Marques da Silva Junior. "Eu reconheço a boa intenção do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC quando ele propõe a legalização do Acordo Coletivo Especial. Naturalmente não se trata de uma iniciativa ‘autofágica'. Mas, num contexto global de destruição dos direitos do trabalhador, eu acredito que há um risco enorme embutido na proposta", advertiu Antunes, em referência à crise econômica internacional que já se aproxima de completar cinco anos. "Não convém propor mudanças na CLT durante um período de turbulência como esse."

O professor mencionou que, na cartilha preparada para divulgar a proposta, o Sindicato defende a ideia de que, dentro de um contexto de liberdade de negociação que seria proporcionado pela legalização do ACE, as categorias mais avançadas do País conquistariam avanços mais significativos, e mais rapidamente, nos acordos coletivos, "puxando" para esse mesmo rumo as categorias menos organizadas. Para Antunes, no entanto, esse "fluxo" pode se dar exatamente no sentido inverso.

"Sem a blindagem da lei, os trabalhadores desprovidos da proteção de uma estrutura sindical forte podem acabar sendo obrigados a abrir mão de direitos conquistados duramente, o que pode enfraquecer, num segundo momento, inclusive os setores mais robustos da classe trabalhadora."

"No discurso mundial em voga atualmente, ‘modernizar' é sinônimo de flexibilização, pejotização [contratação de pessoas físicas como se fossem pessoas jurídicas, com o intuito de reduzir encargos trabalhistas] e precarização", advoga o pesquisador, para quem a proposta de legalização do ACE traz, "pelo menos como conceito", uma espécie de "neocorporativismo" dos metalúrgicos do ABC. "Eles estão pretendendo implantar algo que no contexto restrito de sua experiência pode ser muito bom, mas sem olhar o conjunto do País."

Preocupação

Ex-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) – seu mandato se encerrou em maio deste ano –, Renato Henry Sant'Anna lembrou que, em março de 2012, o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre, esteve na sede da Anamatra, em Brasília, para apresentar à maior entidade representativa dos juízes trabalhistas no País a proposta de legalização do ACE. Mestre em Direito pela University of Illinois College of Law (EUA), com especialização em Direito do Trabalho (USP), disciplina que leciona há 15 anos na Universidade Paulista (Unip), em Ribeirão Preto, o juiz não escondeu sua preocupação com a proposta e fez coro às ressalvas manifestadas pelo sociólogo Ricardo Antunes.

"Em primeiro lugar, eu gostaria de afastar qualquer ideia de que minhas restrições ao anteprojeto se devem a algum tipo de temor em relação a uma possibilidade de a atividade sindical concorrer com o monopólio do juiz em dizer o direito", argumentou Sant'Anna. "Não se trata de ‘reserva de mercado'", brincou. "Mesmo que a proposta seja aprovada, muitas coisas vão parar no Judiciário, não tenho dúvida."

Sobre a ideia em si, o magistrado recorreu a uma metáfora interessante para sintetizar sua crítica. "Pode ser o furo na cerca da civilidade mínima que garante direitos fundamentais aos trabalhadores", comparou. "E onde passa o boi, passa a boiada."

Entre outras questões, Sant'Anna ponderou que a CLT estabelece que a convenção coletiva (pacto entre sindicatos de empregados e de empregadores, abrangendo a categoria profissional e a econômica) se sobrepõe, se mais benéfica ao trabalhador, ao acordo coletivo, princípio que contraria o modelo proposto no ACE, que restringe o pacto aos limites da empresa.

O juiz chamou a atenção também para o que prevê o artigo 2º, inciso II, do anteprojeto de lei encaminhado ao Executivo pelo Sindicato. O texto restringe a prerrogativa de firmar o Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico ao "sindicato profissional, habilitado pelo Ministério do Trabalho e Emprego". Para Sant'Anna, a proposição soa como um retrocesso, à medida que caminha no sentido do retorno do atrelamento das entidades sindicais ao Estado. "Como compatibilizar essa ideia com o artigo 8º da Constituição Federal, que preconiza a livre associação profissional ou sindical, vedando ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização dos sindicatos?", questionou o professor, lembrando que, conforme dispõe a Súmula 677 do Supremo Tribunal Federal, a interveniência do Estado na organização sindical por intermédio do MTE está restrita "ao registro das entidades sindicais e ao zelo pela observância do princípio da unicidade".

"Essa proposta do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC é, de certa forma, até mais radical do que o projeto de flexibilização da legislação trabalhista do País, lançado durante o governo FHC e que propunha a prevalência do negociado sobre o legislado", reagiu o juiz. "Ainda que o anteprojeto contenha, no inciso III do artigo 2º, a expressão ‘observado o artigo 7º da Constituição', isso não garante o cumprimento do que a Carta Magna estabelece. É uma expressão muito genérica", advertiu Sant'Anna. "O artigo 7º, no inciso III, por exemplo, assegura ao trabalhador o fundo de garantia do tempo de serviço, mas não fixa percentual, daí a possibilidade de, num ACE, haver a redução do que é estabelecido hoje", provocou. "O inciso IX preconiza que a remuneração do trabalho noturno deve ser superior à do diurno, mas, mais uma vez, não fixa percentual. É a CLT que determina que a diferença deve ser de no mínimo 20%. O que impediria a redução desse índice para, digamos, 1%, num acordo coletivo especial?", insistiu. "As próprias férias estariam em risco. A Constituição não fala em 30 dias anuais."

"O Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico pode ser bom para os metalúrgicos do ABC", ressalvou Sant'Anna, "mas não é bom para os trabalhadores em geral".

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