Em conferência no Congresso do TRT, professor português fala sobre os direitos fundamentais da pessoa humana nas relações de trabalho

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Por Luiz Manoel Guimarães

"A liberdade oprime, a lei liberta." Qualquer frase, privada do contexto em que foi proferida, pode causar estranheza. E um belo exemplo disso é essa que dá início à matéria, dita na manhã desta quinta-feira, 9 de junho, pelo professor José João Abrantes, catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, em sua conferência no 16º Congresso Nacional de Direito do Trabalho e Processual do Trabalho do TRT da 15ª Região. Afinal, como pode a liberdade oprimir? Em que circunstâncias algo a princípio tão contraditório viria a ser possível?

Nada tão difícil de entender, caro leitor. Falando sobre "Contrato de trabalho e direitos fundamentais", tema, aliás, da obra que lançou em 2005 pela Coimbra Editora, Abrantes lecionou que, numa relação de trabalho, considerada a diferença de poder econômico entre as partes, empregado e empregador, uma suposta "liberdade" seria tão somente ficção, e a lei, essa sim, ao estabelecer e preservar os direitos fundamentais dos trabalhadores, é que lhes garantiria alguma liberdade, de fato. "No direito do trabalho, as relações pré-contratuais são diferentes", sintetiza o professor.

Eis o cerne da conferência. Não custa, porém, avançar um tanto mais na questão.

Primeiro, um pouco do currículo do palestrante, que foi apresentado às mais de mil pessoas que lotaram o Theatro Municipal de Paulínia, palco do encontro, pelo desembargador Fernando da Silva Borges, da 5ª Turma do TRT-15 e que foi vice-presidente administrativo da Corte no biênio 2010-2012. O magistrado, que, por sinal, completa 30 anos de carreira na Magistratura Trabalhista no próximo dia 14 de agosto, chamou a atenção para o fato de que já está se tornando tradição o fato de o Congresso, o mais importante evento promovido pelo Tribunal, contar com a participação de juristas portugueses. O primeiro, em 2014, foi José Joaquim Gomes Canotilho, e, no ano passado, João Leal Amado. Abrantes, de credenciais tão consistentes quanto seus predecessores, desempenhou sua missão à altura dos colegas, como seu currículo já permitia antever.

Senão, vejamos. Doutor em direito pela Universidade de Bremen, na Alemanha, ele é pró-reitor da Universidade Nova de Lisboa e membro de entidades como a Associação Portuguesa de Direito do Trabalho, da qual é vice-presidente, e a European Labour Law Network, que, desde 2007, atua como conselheira da Direção‑Geral do Emprego, dos Assuntos Sociais e da Inclusão da Comissão Europeia. Abrantes é o único representante de Portugal na instituição, que congrega especialistas em direito do trabalho de mais de 35 países, incluindo os 28 Estados-membros da União Europeia.

"O direito do trabalho é, de longe, o ramo do direito privado mais fortemente permeado pelos direitos fundamentais", ensina o professor. Mas essa condição não veio de graça, ele sublinha. "A história do direito do trabalho tem sido construída com sangue, suor e lágrimas."

Nada por acaso, então, a proteção da lei à parte mais fraca numa relação trabalhista, dado que, sentencia o conferencista, "a liberdade do contrato de trabalho não passa de uma ficção para quem não detém o poder econômico", como já antecipamos. "Entre o rico e o pobre, entre o forte e o fraco, é a liberdade que oprime, e a lei que liberta", insiste Abrantes, esclarecendo cada vez mais aquela ideia com que introduzimos o texto.

E o tom heterodoxo das ideias do professor vão além. Ele desmitifica algo que não são poucos os que julgariam ser unanimidade, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, documento consagrado pela ONU em 1948. "É a magna carta do liberalismo", provoca o conferencista. Magna carta do liberalismo? Em que sentido? Começa pelo artigo 1º - "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade"-, advoga Abrantes. "Ao proclamar a liberdade formal, a Declaração se contenta com isso, sem se importar com as diferenças tão evidentes entre os seres humanos", defende.

Na contramão, sustenta o professor, o direito do trabalho "surge contra a insensibilidade social do direito civil, acompanhando a passagem do direito constitucional liberal para o direito constitucional social". Marco dessa mudança, exemplifica Abrantes, a Constituição mexicana de 1917 foi a primeira a atribuir aos direitos trabalhistas o status de direitos fundamentais. "Ela promove um 'alargamento' das normas constitucionais, de forma que a igualdade entre os homens se dê de fato, e não seja apenas uma ficção."

Em Portugal, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e a sua projeção no direito do trabalho surgiram com a Constituição de 1976, que, segundo Abrantes, influenciaria a Carta espanhola promulgada dois anos depois e a própria Constituição brasileira de 1988. Na Carta portuguesa, os direitos fundamentais tipicamente trabalhistas, leciona o professor, ocupam um capítulo inteiro, do artigo 53 ao 57, e limitam os poderes empresariais, coibindo os excessos. "É uma questão de equilíbrio entre a salvaguarda dos direitos dos trabalhadores e suas obrigações contratuais", resume o conferencista. "O empregador também tem seus direitos respeitados, mas a preocupação maior é com a parte cujos direitos podem ser postos em causa."

No que diz respeito ao direito à privacidade, por exemplo, detalha Abrantes, prevalece o princípio de que "o trabalhador não deixa de ter uma vida cá fora". O respeito à vida privada, no entanto, não é ilimitado, pondera o professor. Caso o comportamento do empregado implique alguma interferência na relação com a empresa, ele não estará isento da possibilidade de haver consequências. "Prevalece o princípio da separação entre a vida pessoal do empregado e a relação de trabalho com seu empregador, mas, em casos extremos, certos fatos da vida privada podem constituir justificativa até para o despedimento por justa causa", adverte o palestrante.

Foi o caso, lembra ele, de um piloto de avião que, na véspera de seu próximo voo, foi flagrado bêbado e, como dizemos por aqui, "criando caso" no hotel em que estava hospedado. Para azar dele, entre as testemunhas de seu reprovável comportamento estavam justamente alguns passageiros do voo.

Melhor sorte teve uma trabalhadora que, diferentemente do profissional da aviação, viu a justa causa que lhe fora aplicada ser desfeita pelo Tribunal da Relação do Porto (TRP), competente para julgar, em 2ª instância, recursos provenientes das Comarcas do Porto, do Porto Este e de Aveiro. Ela havia trocado e-mails com uma colega, proferindo, digamos, considerações nada elogiosas ao seu superior imediato. Malfadadamente, no dia seguinte a autora dos comentários precisou faltar ao trabalho, doente que estava, e coube justamente ao não muito apreciado chefe a tarefa de, conforme facultava o regulamento da empresa, acessar as mensagens enviadas e recebidas por sua subordinada, à guisa de se certificar se não haveria algo relacionado às atividades laborais da moça. Ao deparar com a mensagem cujo conteúdo versava sobre ele próprio, o chefe, como era de se esperar, ofendeu-se e demitiu a trabalhadora. Todavia, o TRP entendeu que, como se tratava de uma mensagem de cunho particular, o superior hierárquico da autora do e-mail deveria ter estancado a leitura tão logo percebesse esse detalhe, impedindo, assim, que as opiniões pessoais da trabalhadora a respeito dele desaguassem no fim do contrato de trabalho.

A preservação da privacidade do trabalhador encontra respaldo explícito na legislação portuguesa, esclarece Abrantes. Em seu artigo 17, por exemplo, o Código do Trabalho (CT) lusitano restringe a coleta de informações de um candidato a uma vaga de trabalho, por parte da empresa, àquilo que tiver estreita relação com as atividades a serem exercidas no emprego. "Só o que for estritamente necessário e relevante às aptidões exigidas", reforça o professor.

O direito à privacidade, no entanto, retoma uma vez mais o conferencista, de fato não é absoluto. A videovigilância, como a legislação de Portugal denomina o monitoramento do ambiente de trabalho por intermédio de câmeras de vídeo, deve ser "genérica, com o intuito de detectar fatos, situações ou acontecimentos incidentais, sem recair diretamente sobre os trabalhadores ou postos de trabalho, sob pena de os empregados serem convertidos em suspeitos permanentes de ilícitos criminais", conforme explica o conferencista. Videovigilância oculta, então, nem pensar. "Violaria o artigo 20 do CT", adverte o professor. "Qualquer forma de controle do ambiente de trabalho, em suma, deve ser a de menor impacto, genérica, evitando o monitoramento individual. Isso vale para as câmeras de vídeo, para os e-mails, para qualquer meio de vigilância, enfim."

Abusos que persistem

Em acréscimo à explanação de Abrantes, o desembargador Fernando da Silva Borges citou uma pesquisa divulgada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 2015. Mais de 40% dos trabalhadores entrevistados revelaram já terem sido vítima de assédio moral ou sexual. No Brasil, mostrou uma reportagem da BBC, de 4.975 profissionais de todas as regiões do País ouvidos no fim do último mês de maio, 52% afirmaram que já sofreram algum tipo de assédio, mas apenas 12,5% das vítimas denunciaram o assediador.

Outro dado estarrecedor apontado pelo magistrado, também objeto de denúncia em reportagens publicadas na mesma época, foi a prática que vem sendo adotada por multinacionais para negar a seus empregados até mesmo o simples direito de ir ao banheiro. "São empresas, por exemplo, do setor avícola, que têm obrigado os trabalhadores a usar fraldas geriátricas. Parece coisa dos primórdios da Revolução Industrial, mas está acontecendo agora, em pleno século 21, e não em países em desenvolvimento, mas nos próprios Estados Unidos, a maior potência econômica do planeta. O objetivo é evitar inclusive as menores pausas nas linhas de produção. Muitos trabalhadores têm evitado beber líquidos, para não ter a necessidade de urinar, e acabam prejudicando seriamente a saúde, sofrendo dores terríveis. Em uma determinada empresa, 86% dos empregados afirmaram parar em média menos de duas vezes por semana para ir ao banheiro."

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