Poder Público também é devedor quando terceiriza obrigação constitucional

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“Está amplamente estabelecido na Constituição Federal a obrigação de o Poder Público assegurar o fornecimento e o acesso a meios mínimos de garantia à educação infantil fundamental e profissionalizante, à saúde e à assistência ao portador de deficiência, seja ao lado da iniciativa privada ou em associação com esta, nos termos da lei.” Sob esse fundamento, a 9ª Câmara do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 15ª Região confirmou sentença da 2ª Vara do Trabalho de Paulínia, município da região de Campinas, mantendo a condenação subsidiária da Prefeitura da cidade, em processo movido por uma terapeuta ocupacional e que tem como primeira reclamada uma escola que atende alunos especiais, vítimas de paralisia cerebral.

No recurso, o município alegou ser parte ilegítima para figurar no pólo passivo da ação e para responder subsidiariamente pela dívida trabalhista, porque sua relação com a primeira reclamada se limitaria à concessão de bolsas de estudo para alunos carentes. Por sua vez, a escola recorreu pleiteando que fosse desfeito o reconhecimento do vínculo empregatício decretado pela decisão de primeira instância. Reagiu também contra a condenação ao pagamento de indenização pelo uso da imagem da autora, item também atacado pelo recurso da Prefeitura.

“O caso em tela não é tão simples como quer fazer crer o primeiro recorrente”, sublinhou o relator do acórdão no TRT, desembargador federal do trabalho Nildemar da Silva Ramos, rechaçando os argumentos da Prefeitura. Para o magistrado, são indiscutíveis o mérito e a pertinência de programas de bolsa de estudos mantidos pelos municípios. “Se a atividade restringe-se a essa modalidade, não há propriamente terceirização de serviços às instituições contratadas”, ponderou Nildemar, ratificando o exemplo mencionado pelo próprio recorrente, o das bolsas de estudo para cursos superiores, situação em que não existe a obrigatoriedade de o poder público municipal conceder o benefício. Não é esse, no entanto, o caso em discussão no processo, conforme enfatizou o desembargador.

Dever constitucional

“É obrigação inexcusável e (...) função própria do Estado fornecer educação básica e assistência ao portador de deficiência”, sentenciou em seu voto o relator, citando o artigo 23 da Constituição Federal, segundo o qual é competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios “cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência” (inciso II), além de “proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência” (inciso V). O artigo 30 da Carta Magna, por sua vez, confere aos municípios, no inciso VI, a atribuição de “manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental”, observou Nildemar, mencionando ainda os artigos 196, 203 e 204 da Carta, que também estabelecem essas atribuições.

No entendimento do relator, acompanhado por unanimidade pelos demais integrantes da Câmara, o fato de a Prefeitura preferir não operar diretamente no setor, associando-se a uma instituição privada, não é o bastante para transferir sua obrigação. “Ao contrário do insinuado no apelo, o programa não foi uma simples opção, uma benesse, uma iniciativa meritória da administração. Continua sendo uma de suas atividades características, exercidas, porém, através de um prestador de serviços”, prosseguiu o desembargador. “É aí que se identifica a terceirização”, arrematou.

Dessa forma, como beneficiário direto dos serviços da reclamante, o município foi mantido na condição de responsável subsidiário pelas obrigações trabalhistas da prestadora, a escola, reconhecidas no processo. Na impossibilidade de se satisfazer o futuro crédito da autora por meio de execução contra a primeira reclamada, a dívida será cobrada à Prefeitura. “Observe-se que a responsabilização do tomador não implica reconhecimento do vínculo empregatício nem ilegalidade da terceirização. Esta é legal, mas ainda assim não afasta a responsabilidade discutida”, assinalou o desembargador Nildemar, advertindo ainda que a execução do contrato dever ser acompanhada pelo tomador do serviço, que não pode se eximir de seu papel, sob pena de incidir em culpa “in vigilando”. O magistrado afastou a aplicação da Lei 8.666/93, que, no artigo 71, parágrafo 1º, isenta o Poder Público do pagamento de direitos trabalhistas a quem lhe presta serviços por intermédio de empresa interposta.

Vínculo empregatício

Quanto à ocorrência ou não de vínculo empregatício entre a terapeuta e a primeira reclamada, questão discutida pela Câmara por força do recurso interposto pela escola, que alegou simples prestação autônoma de serviços, o relator foi categórico: “a reclamante laborou em estreita ligação com a reclamada, exercendo função essencial”. O magistrado observou que a primeira reclamada tem como objetivo social a prestação de assistência ao deficiente, incluindo a prestação de serviços de terapia ocupacional, área de atuação da autora do processo. Dessa forma, seria impossível à escola, refletiu Nildemar, prestar esse tipo de serviço “sem a inclusão de pelo menos um profissional do setor em seu quadro de funcionários”.

Além disso, o desembargador concluiu que a prova documental juntada aos autos comprovou haver controle, fiscalização e ingerência da empresa nas atividades desenvolvidas pela terapeuta. “De fato, a pessoalidade, a habitualidade e a onerosidade restaram demonstrados”, sentenciou o magistrado. “A relação de emprego não se prende a contratos de qualquer natureza estabelecendo condições diversas daquelas encontradas na realidade”, advertiu Nildemar, lecionando que as características da relação mantida entre as partes se sobrepõem às cláusulas constantes do contrato assinado por elas. “É o fato ocorrido que importa. Se a relação havida caracteriza-se pela presença dos requisitos constantes do artigo 3º da CLT, para a Justiça do Trabalho trata-se de relação de emprego, mesmo que o trabalhador tenha ampla capacidade de negociação dos termos do contrato ou exerça outra atividade paralelamente, fora da órbita de atuação da escola.”

Sobre a utilização da imagem da trabalhadora, a Câmara também decidiu no sentido de que ela se deu de maneira indevida, ratificando o entendimento do juiz de primeira instância. A própria instituição de ensino admitiu o uso da imagem da reclamante em material publicitário, conforme cópia juntada ao processo. Quanto aos argumentos da escola, que alegou não haver a intenção de lucro com a divulgação do material e que as referências ao trabalho da terapeuta seriam “mero subsídio de caráter cientifico e institucional”, em nada convenceram os julgadores. Conforme observou em seu voto o desembargador Nildemar, o uso do nome e da imagem da reclamante, além ter sido feito sem o consentimento dela, ocorreu de maneira ampla e ostensiva, como provaram os documentos anexados. Não bastasse isso, a ré, ao contrário do que tentou fazer parecer, “não é entidade sem fins lucrativos e, portanto, beneficiou-se economicamente da vinculação de seus serviços às credenciais pessoais da profissional e colaboradora”, reforçou o relator, soterrando a tentativa da escola de modificar a sentença original. (Processo 515-2005-126-15-00-1 RO)

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