Câmara concede indenização por dano moral a mãe e filha por fato ocorrido durante a gestação
Por Ademar Lopes Junior
Desconfiado de que funcionárias do caixa de sua loja poderiam estar desviando dinheiro das vendas, o proprietário do estabelecimento, uma microempresa, combinou com sua sócia (de outra loja) forjar um flagrante, com cédulas previamente marcadas, para identificar qual das empregadas estaria cometendo o ilícito. No dia 8 de setembro de 2003, a sócia esteve na loja fazendo compras e percebeu, depois de efetuar o pagamento, que uma das empregadas (a única que estava na loja no momento) guardava quantias de dinheiro em sua própria bolsa. Os sócios não tiveram dúvida: chamaram a polícia. O proprietário garantiu que o flagrante armado não se tratou de “qualquer vingança pessoal”, como foi alegado pela trabalhadora, bem como que “jamais autorizou qualquer empregado a guardar o dinheiro das vendas realizadas em seus bens pessoais”. A trabalhadora, segundo depoimento do proprietário, era a mais antiga de todas as empregadas da loja e “a pessoa que menos levantava suspeita sobre sua idoneidade”.
A ação foi ajuizada no Juízo Cível de Ribeirão Preto, que declinou a competência para a Justiça do Trabalho, na qual foi suscitado conflito negativo de competência. Os autos foram enviados para o Superior Tribunal de Justiça, que decidiu pela competência da Justiça do Trabalho.
A empregada, que estava grávida de sua filha na época dos fatos, ajuizou ação trabalhista em 7 de julho de 2006, contra os dois sócios da microempresa (duas pessoas físicas), e, apesar do vínculo de trabalho, as reclamantes (mãe e filha) não pediram nenhuma verba trabalhista, mas tão somente indenização por ato ilícito praticado pelos reclamados.
As reclamadas alegaram prescrição, mas a sentença da 5ª Vara do Trabalho de Ribeirão Preto rejeitou, lembrando que a indenização por dano moral é prevista no inciso V do artigo 206 do Código Civil, que prevê prazo de três anos para a pretensão de reparação civil. Como o ato imputável aos reclamados ocorreu em 8 de setembro de 2003, e a ação foi ajuizada em 7 de julho de 2006 (menos de três anos depois), o juízo rejeitou a prejudicial de mérito.
As reclamantes fundamentaram o pedido de indenização principalmente no constrangimento vivido pela trabalhadora, que teve seus pertences vasculhados pela polícia. Mesmo tendo cumprido ordens do proprietário, de guardar o dinheiro do caixa na própria bolsa (o que era praxe na loja, por motivos de segurança), foi presa na frente de todos os outros empregados, bem como de clientes. Nem mesmo seu estado de gravidez a poupou do vexame.
Instaurado processo crime, a trabalhadora foi absolvida, com base no verbete nº 145 do Supremo Tribunal Federal (não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a consumação).
Dessa forma, a trabalhadora pediu na Justiça do Trabalho o pagamento de indenização por danos morais, pelos prejuízos sofridos, e incluiu a própria filha como reclamante na ação, por entender que os danos sofridos pela menina, durante a gestação, também mereciam reparação. Pediu ainda indenização por danos materiais, pela impossibilidade de conseguir novo emprego, em face da ação penal que tramitava contra ela, e ainda requereu pensão vitalícia para a filha.
Os sócios tentaram se justificar. O primeiro disse que “tomou medidas no sentido de identificar qual das empregadas da loja estaria subtraindo quantias das vendas realizadas”. A outra disse que, ao constatar que a trabalhadora “havia retido o dinheiro em sua bolsa, apenas cumpriu o seu dever de dar a notitia criminis”.
A sentença de primeiro grau entendeu ser incontroverso o flagrante preparado, pois os reclamados não negaram que combinaram o fato. E porque a trabalhadora foi absolvida no processo criminal, em virtude de o flagrante preparado tornar o crime impossível de consumação, e por entender dispensável se aferir se a trabalhadora realmente praticou o crime, já que “a conduta dos reclamados, ao preparar o flagrante, direcionado a ela, constituiu abuso de direito (artigo 187 do Código Civil)”, e apesar de reconhecer o direito dos patrões de “tomar as medidas legais cabíveis para a verificação de possíveis irregularidades praticadas”, mas “desde que dentro da razoabilidade”, a sentença de primeiro grau considerou que houve o abuso de direito.
O juízo da 5ª VT de Ribeirão Preto entendeu que “o abuso de direito restou caracterizado pelo flagrante preparado, pois, mesmo os reclamados sabendo que a prova oriunda desse não teria qualquer validade, expuseram a primeira reclamante, em plena gestação, a uma situação vexatória desnecessariamente”. Mesmo assim, negou à trabalhadora o pedido de indenização por danos materiais, porque ela “não comprovou não ter obtido outro emprego em virtude do ocorrido”. Negou também o pedido de pensão vitalícia para a segunda reclamante, por entender não ter havido comprovação de qualquer dano na sua gestação.
No que tange ao dano moral, a sentença ressaltou a finalidade pedagógica (escopo educativo da jurisdição), ao demonstrar para o infrator e para toda a sociedade que “não fica impune quem desrespeita as regras de proteção à dignidade da pessoa humana, fazendo pouco do ser humano, além de infringir, também, as regras básicas da convivência humana, plasmadas no ordenamento jurídico e no espírito dos homens e mulheres de bem”. E por isso entendeu que a reclamante merecia a reparação pelo dano moral sofrido. O valor, segundo o que o juízo entendeu razoável, foi fixado em R$ 7 mil, condenando os reclamados, solidariamente, ao pagamento. Porém, indeferiu o pedido de indenização por danos morais à segunda reclamante, “posto que sua honra não foi, em nenhum momento, ofendida, já que não lhe foi imputado qualquer fato”.
A sentença não agradou às partes, que recorreram. Os reclamados, entre outros argumentos, sustentaram “não ter havido abuso de direito, visto que a apuração da suspeita de furto ocorreu dentro dos limites permitidos, sem que houvesse exposição a situação vexatória ou humilhante”. As reclamantes alegaram que a segunda reclamante, na condição de nascitura na época dos fatos, “também sofreu dano moral em razão da exposição vexatória de sua mãe, proporcionada pelos reclamados”, e sustentaram que o valor arbitrado para a indenização concedida à primeira reclamante “é irrisório em relação à gravidade do dano causado, pelo que deve ser majorado”.
O relator do acórdão da 4ª Câmara do TRT, desembargador Luiz José Dezena da Silva, reconheceu que “o primeiro reclamado efetivamente incorreu em manifesto abuso de direito”. E considerou que “a alegação de que o flagrante teria sido preparado para apurar desvio de numerário do caixa não está amparada por prova robusta”, pois “não há prova alguma de que esse desvio tivesse efetivamente ocorrido”. O magistrado acrescentou que “nem mesmo a testemunha patronal ouvida em juízo foi capaz de apresentar qualquer subsídio apto a sustentar a narrativa da defesa, no sentido de haver habitual subtração de numerário”.
A Câmara entendeu que “a inexistência de prova sobre o alegado furto habitual leva à conclusão de que o flagrante preparado teve como único escopo a terminação do contrato de trabalho da primeira reclamante, que estava protegido pela garantia de emprego”. O colegiado se baseou na lição de Malatesta, segundo a qual “o ordinário se presume, e o extraordinário se prova”.
O acórdão considerou informações prestadas pelas testemunhas, no sentido de que “...durante o dia o dinheiro ficava dentro da gaveta no balcão, e, caso fossem se ausentar da loja para ir ao banheiro ou comprar um lanche, então colocavam o dinheiro dentro da bolsa...” e de que “...na loja havia apenas uma gaveta no balcão e, de fato, era vulnerável...”. A Câmara entendeu que “ao preparar um flagrante durante o expediente, acionando a autoridade policial para realizar a prisão da reclamante antes da realização do fechamento e apuração concreta de eventuais diferenças do caixa, o primeiro reclamado excedeu os limites da boa-fé, expondo a primeira reclamante a situação vexatória, sem que lhe fosse dada chance de se defender”.
A decisão colegiada ressaltou que “não se pode descurar que a primeira reclamante encontrava-se grávida na época dos fatos, sendo que a prova dos autos permite entrever que o flagrante preparado resultou da insatisfação do primeiro reclamado com tal situação, especialmente no que tange aos efeitos jurídicos incidentes sobre o contrato de trabalho”. E ressaltou trecho da sentença proferida no processo criminal, em que o magistrado também captou singular situação vivenciada pela autora: “Além disso, importa observar que a acusada estava grávida e vinha tendo desentendimentos com o patrão por questões trabalhistas, o que coloca em dúvida o dolo da acusada, até porque justificou ter colocado o dinheiro dentro da bolsa porque a loja não possuía caixa registradora e nem cofre, tão somente uma gaveta sem chave no balcão, o que de fato pode ter motivado a acusada a colocar o dinheiro dentro da bolsa, até porque a testemunha L., que também era vendedora da loja, disse que tal procedimento era utilizado com frequência pelas vendedoras”.
Em conclusão, o acórdão constatou o abuso do direito, que caracterizou o dano moral. No que tange à segunda reclamante, que era nascitura na época dos fatos, o acórdão reconheceu que a sentença comporta reforma, lembrando que o Superior Tribunal de Justiça “tem entendido pela possibilidade de o nascituro sofrer danos morais diante de certos acontecimentos capazes de lhe gerar sentimentos de angústia, sofrimento e agonia”. O acórdão também salientou que “pesquisas científicas que estudam o desenvolvimento emocional do feto são unânimes ao afirmar que a repercussão dos sentimentos maternos é elemento importante para o desenvolvimento do psiquismo do nascituro”, afirmando assim que “não há como obter outra conclusão senão a de que a segunda reclamante também sofreu dano em ricochete, que reverberou em sua intimidade, bem protegido pelo artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988”.
Quanto aos valores, a 4ª Câmara levou em consideração a gravidade e a extensão do dano perpetrado (artigo 944 do Código Civil), assim como os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e ponderação, e rearbitrou o quantum fixado na origem para a primeira reclamante de R$ 7 mil para R$ 15 mil. O valor da indenização para a segunda reclamante foi arbitrado em R$ 10 mil.
Quanto ao recurso das reclamadas, a Câmara não lhe deu provimento. (Processo 0085700-44.2006.5.15.0113 RO)
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