Márcio Vallim é o primeiro servidor cego a ingressar na 15ª por concurso

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Por Ademar Lopes Junior

A perda da visão não foi de repente. A vida toda Márcio Roberto Vallim sofreu com os óculos “fundo de garrafa” que corrigiam seus 15 ou 16 graus de miopia. A alta miopia, mal de família, foi inclusive o grande motivo de ele ter perdido a visão num dos olhos, durante um jogo de futebol com os amigos, quando uma bolada no rosto causou o descolamento da retina. Nenhum tratamento reverteu o mal, e, por volta dos 30 anos, Márcio estava cego de um olho. O outro, além da miopia, não demorou para ser acometido de uma catarata galopante, que em menos de dois anos também lhe roubaria a visão. Nem as tentativas de tratamento ou cirurgia foram generosas com Márcio. A perda da visão já era uma realidade em sua vida.

O apoio da família foi fundamental. Casado e pai de três filhas, Márcio precisou reaprender a viver, com a limitação. Químico de formação, chegou a trabalhar na Alpargatas, em Mogi Mirim, mas sua vocação mesmo sempre foi a sala de aula. Ensinar química, física e matemática, para todas as idades, crianças e jovens no ensino médio, técnico e até nas Faculdades Integradas Maria Imaculada, em Mogi Mirim. Puro prazer! E se é que se pode falar de sonhos, é ainda um dos poucos que acalenta: retomar a carreira acadêmica, na área de ciências.

Mas por quê?


Fidelidade - bem comportado, Champ descansa junto ao dono, à espera do final das aulas do curso de integração

Destino? Nada disso. Márcio não acredita que houvesse um plano maior pelo qual tivesse de passar. “Acho que fiquei cego por puro acaso. No meu caso, um conjunto de coincidências. Depois que perdi a visão, comecei a perceber que muitas outras pessoas passavam por problemas parecidos com o meu, e até maiores. Eu, por exemplo, nunca senti dores nos olhos, mas sei de gente que, além de não enxergar nada, ainda sente dores horríveis”, afirmou Márcio. Ele não se diz religioso mas admite que tem fé. Essa fé ele professa num pequeno grupo de iniciados na Bahai, uma doutrina iraniana, monoteísta, com aproximadamente 170 anos, e que enfatiza a unidade espiritual da humanidade.

Sorridente, carrega um senso de humor contagiante. Ao lado de seu cachorro, Champ, um labrador preto e com cara de amigo, Márcio caminha altivo, bem alinhado, mas garante que não tem muitas vaidades, nem com roupas nem com o corpo. “Nunca fui muito de esporte, mas cuido mais da saúde depois que deixei de enxergar. Faço musculação e natação para manter o peso e ter uma vida mais saudável”, confessa, sem defender teorias ou dietas mirabolantes. O cachorro, treinado em Brasília no Projeto Cão-Guia de Cego pelo Instituto de Integração Social e de Promoção da Cidadania (Integra), está com Márcio há pouco mais de cinco anos.

De todos os hobbies, o cinema foi a grande perda na vida. Márcio fala com saudade do tempo em que frequentava cinema. Em compensação, passou a gostar mais de ler (audiolivros), principalmente história. Tanto faz se de ficção ou as reais mesmo. Vale tudo. A imaginação também não ficou comprometida. Ele estimula sua memória com as ideias. Mesmo sem enxergar, Márcio mantém o que chama de memória visual, e por isso sonha e imagina coisas reais, o que para ele não diminui sua capacidade criativa. Segundo ele mesmo diz “consigo sonhar com imagens coloridas, tenho boa noção de espaço e volume, e quando ouço a voz de alguém, é como se ouvisse uma pessoa desconhecida pelo telefone, fico imaginando como ela é. Normal...”.

O bom-humor impede que Márcio cultive grandes melancolias ou frustrações. Ele mesmo reconhece que tem lá suas frustrações, “mas sempre por motivos banais”, como, por exemplo, quando deixa alguma coisa cair no chão e não consegue achar, ou quando quer “ler” e o software não responde. “Nada muito grave”, afirma. “Medo? Ah... tenho medo de ficar surdo, né...” – brinca Márcio, com sua risada.

Primeiro cego no TRT


Segundo o Instituto de Responsabilidade e Inclusão Social (IRIS), o Labrador está entre as raças mais indicadas para a função de cão-guia, junto com o Golden Retriever e o Pastor Alemão

O nome de Márcio Roberto Vallim ocupa o primeiro pequeno retângulo, no alto da página da lista de presença dos novos servidores do Tribunal Regional do Trabalho que foram recepcionados nos dias 19 e 20 de maio, na sede do Regional, em Campinas. A assinatura tem a base quadrada e indica que foi feita sobre uma régua. Adaptações. Nenhuma surpresa. A palavra de ordem na vida de Márcio é “adaptação”. Desde que perdeu a visão, há pouco mais de 10 anos, ele, que está prestes a fazer 45 em dezembro, aprendeu a andar com um cão-guia, especialmente treinado para ajudá-lo a caminhar com mais independência. Também reaprendeu a ler, agora em braille, mas confessa que não treina muito, acha difícil a desenvoltura, e por isso prefere “ler” no computador, usando programas adaptados para deficientes visuais.

Também aprendeu a mudar os hobbies e deixou – pelo menos por enquanto – as profissões de químico e professor para ser servidor da Justiça. Depois de cinco anos trabalhando na 1ª Vara Cível de Mogi Guaçu, na Justiça Estadual, Márcio tomou posse, no dia 18 de janeiro de 2011, como técnico judiciário, na Vara do Trabalho (VT) de Mogi Guaçu. No dia seguinte, uma quarta-feira, começou o trabalho.

Para alguns, uma tarefa impossível. Afinal, o que pode uma pessoa com deficiência visual fazer numa secretaria de VT? Para outros, um desafio, ou melhor, o mais legítimo cumprimento da lei, que garante aos deficientes o direito de concorrer a uma vaga no quadro de servidores públicos. Célia Maria Ovigli, assistente-chefe do Setor de Seleção e Treinamento do TRT, lembrou que “o Tribunal cumpre a lei, e fornecer material adequado a servidores com deficiência é dar a chance de eles mostrarem mais sua capacidade de trabalho”.

Márcio concorreu na cota de 5% de vagas reservadas a pessoas com deficiência. Ficou em quarto lugar, no polo de Piracicaba, mas ele mesmo não acreditava que seria chamado. Isso porque, como ele mesmo sabia, para cada vinte chamados, um era da cota da reserva. No caso dele, só depois que chamassem cerca de 80 candidatos é que seria a sua vez. Por isso, a convocação em dezembro do ano passado foi mais que uma surpresa, foi a mudança tão esperada para uma vida mais feliz. Deixar a Justiça Comum e ingressar na Justiça do Trabalho: mais uma realização.

O trabalho também foi adaptado para as necessidades especiais do novo servidor, o primeiro com cegueira total a ingressar por concurso no TRT da 15ª . “Por enquanto eu estou fazendo o mesmo que fazia na Justiça Comum: juntada e autuação”. Márcio conta com a ajuda dos colegas, que deixam todos os documentos e despachos em ordem dentro dos autos, e ele faz o resto. Autua e numera. Por enquanto é só isso, mas, quando o software que o Tribunal já instalou estiver funcionando plenamente –ainda não é possível a leitura de todos os programas –, sua atuação vai ser maior.

O diretor de Informática do TRT, Herbert Wittmann, disse que “o Tribunal já providenciou a compra e a instalação do software especial Virtual Vision para deficientes visuais, que permite a leitura de textos em word e até da Internet”. Wittmann disse que a indicação foi do próprio servidor e que ainda está sendo aguardado um “scanner” especial, capaz de “ler” com mais detalhes, especialmente as configurações virtuais do ambiente de trabalho. Mesmo com as limitações, Márcio se diz satisfeito. Afinal, em menos de dois meses de trabalho no TRT adaptações já estão sendo feitas, o que vai garantir ao novo servidor do Tribunal mais dignidade e independência no seu trabalho.

Antes de Márcio, ainda na década de 1990, a Justiça do Trabalho da 15ª Região conheceu outro servidor cego. Nomeado para o cargo em comissão de assessor, Ricardo Tadeu Marques da Fonseca atuou no gabinete do desembargador Oswaldo Preuss, que se aposentou em 1999. Cego desde os 23 anos, quando já cursava a Faculdade de Direito, Ricardo ingressaria depois, por concurso público, no Ministério Público do Trabalho, chegando a ocupar a chefia do MPT na 15ª Região. Posteriormente, transferiu-se para a 9ª Região (PR). Em 2009, foi nomeado pelo então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, para ocupar uma vaga de desembargador no TRT paranaense, pelo quinto constitucional. Ricardo tornou-se, assim, o primeiro magistrado cego do País, e o próprio Lula esteve presente à sua posse na Corte.

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