Remuneração e esforço dos cortadores de cana são discutidos em evento na Escola Judicial

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Por Ademar Lopes Junior

O trabalho na produção canavieira e o salário por produção foram tema das palestras da 7ª Semana Temática da Formação Inicial Continuada até o Vitaliciamento, que reuniu 45 magistrados na Escola Judicial do TRT na manhã desta segunda-feira (16/4), sendo 43 da 15ª Região e dois em intercâmbio, um da 5ª Região (BA) e outro da 10ª Região (Distrito Federal e Tocantins). Participaram ainda do evento 17 servidores.

O vice-diretor da Escola Judicial, desembargador Samuel Hugo Lima, apresentou os dois palestrantes, Erivelto Fontana de Laat, doutor pela Universidade Metodista de Piracicaba, e Maria da Graça Bonança Barbosa, titular da 5ª VT de São José dos Campos. O desembargador Samuel disse que se sentia “emocionado por estar ladeado de dois jovens com coragem para ousar e mudar a jurisprudência”.


O palestrante Erivelto de Laat apresentou sua própria tese de doutorado, “Trabalho e risco no corte manual de cana-de-açúcar”, cujo subtítulo, “a maratona perigosa dos canaviais”, traçou o paralelo adotado pelo palestrante entre o trabalho do cortador de cana e a prática dos esportistas. A analogia não foi por acaso. Com formação original em Educação Física, com ênfase em atividade física e saúde do trabalhador, o palestrante também é mestre em Engenharia de Produção, com ênfase em ergonomia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e atualmente é professor assistente da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), campus Irati, no Paraná.


O objetivo da tese do palestrante foi “identificar os determinantes do trabalho que podem afetar a saúde dos trabalhadores e/ou a produtividade através de um diagnóstico das condições de trabalho na atividade de corte de cana-de-açúcar”. Também foi o de “discutir os parâmetros legais e normativos que envolvem essa atividade” e, ainda, “desenvolver métodos que possam ser úteis para a normatização, por parte dos órgãos governamentais, de condições seguras de trabalho no setor da cana-de-açúcar”.

Erivelto ressaltou que ainda é rara no Brasil a literatura sobre a atividade dos cortadores de cana, mais ainda as pesquisas científicas sobre essa atividade. O palestrante disse que teve de se valer, em seu trabalho acadêmico, de muitas pesquisas norte-americanas, feitas com esportistas. Segundo ele, nos Estados Unidos publica-se muito sobre ciência do esporte, e a que foi feita com jogadores de futebol americano é o que mais se aproxima, segundo o professor, da realidade dos cortadores de cana, pelo esforço despendido e pelas vestimentas específicas.

Muito da palestra de Erivelto de Laat abordou a questão do meio ambiente do trabalho, especialmente no que se refere ao calor e às penosas condições do trabalho (fuligem, poeira, animais peçonhentos, transporte), além do esforço despendido na atividade. Segundo o pesquisador, que para fazer sua pesquisa viveu uma semana entre os cortadores de cana na região de Piracicaba, foram apurados dados sobre a atividade desses trabalhadores que ultrapassam todos os limites humanos. Não é coincidência, por isso, que a vida útil dos cortadores se assemelha a dos escravos, em torno de 12 anos de trabalho.


A pesquisa apurou os movimentos corporais dos cortadores e registrou resultados alarmantes. Segundo Erivelto, um trabalhador que corta aproximadamente 10 a 13 toneladas/dia faz 3.080 flexões de coluna em um dia de trabalho, o que representa 1/3 da sua jornada, e 3.498 golpes de podão (muitos deles o trabalhador executa flexionado). A pesquisa registrou, em filmagem de 107 minutos, que um determinado cortador realizou 1.209 flexões de coluna e 442 rotações lombares. Dividindo-se o número de flexões da coluna pelo tempo de 107 minutos, “chega-se à média de 11,29 flexões por minuto, ou ainda a 1,88 flexões a cada 10 segundos”.


O estudo também incluiu a retirada de amostra de sangue total dos trabalhadores, ao final da safra, para dosar Creatino Quinase na isoforma da musculatura esquelética, proteína C reativa e ureia plasmática, como marcadores bioquímicos de inflamação. Constatou-se que os trabalhadores “apresentaram perdas significativas de gordura corporal e peso do início até a metade da safra, sem recuperação até o final”. Porém, “todos ganharam massa magra e os de ingresso mais antigo na atividade ganharam menos”. Foram encontrados “níveis anormais de Creatino Quinase (75%) e Ureia (16,7%) entre os safristas”.

Em conclusão, o professor afirmou que se observa no sistema produtivo da cana uma competição tão acirrada como a que acontece no esporte. Em sua analogia com a maratona, tanto no corte da cana quanto nessa modalidade esportiva, cortadores e competidores se assemelham “pela proximidade de percepções e pelos limites”.

Salário por produção


A segunda palestra do dia, “O salário por produção”, foi ministrada pela juíza Maria da Graça Bonança Barbosa, especialista em direito civil e mestre em direito do trabalho pela Universidade de São Paulo. Ela trouxe inúmeras informações da imprensa paulista e nacional sobre a produção de etanol e sobre a atividade das usinas e dos cortadores de cana, todas do ano de 2007, quando o Brasil registrou um crescimento expressivo na produção de álcool, paralelamente a um aumento no número de empregos com carteiras assinadas.


Apesar do positivo aspecto econômico, a palestrante salientou a atividade dos cortadores de cana, semanalmente estampada na imprensa da época com mortes durante o trabalho. A juíza afirmou que esse aspecto despertou sua atenção.

Toda a exposição se baseou no incômodo da própria palestrante quanto ao fato de trabalhadores legalmente contratados perderem a vida durante o serviço. Ela lembrou que, em todos os casos, não se comprovou o nexo causal com a atividade desenvolvida. A juíza Maria da Graça enfatizou que dentre as causas de morte, sempre as mesmas, registravam-se parada respiratória, infarto agudo do miocárdio ou AVC.


Apesar da oficial falta de nexo causal, a palestrante ressaltou, com base em outros estudiosos do assunto, que as mortes tinham sim relação com o trabalho. Para isso ela se referiu ao “karoshi”, termo japonês que exprime “morte causada por arritmia cardíaca, infarto ou AVC”, para explicar que as mortes podem estar relacionadas com o excesso de trabalho e com o esforço extremo.

Para a juíza Maria da Graça, algumas conclusões a respeito da atividade dos cortadores de cana são inegáveis: o preço pela unidade é baixo, cerca de R$ 2,50 por tonelada, o que dá ao cortador médio um ganho de R$ 25 por dia. As metas de produção, ao contrário do se que prega, são fixadas pela usina, que exige um mínimo dos trabalhadores, sob pena de rompimento do contrato de trabalho e, pior, de não mais contratar o cortador para outras safras. O controle da produção está sempre nas mãos do empregador, já que o cortador de cana nunca tem clareza de quanto cortou e quanto foi pesado. Quanto ao perfil dos trabalhadores, a prática demonstra que há preferência por homens, negros ou pardos (mais fortes) e provenientes de outras regiões do País. O meio ambiente do trabalho é muito inóspito. A própria cana, especialmente a transgênica (mais leve por dentro e com casca mais grossa), apesar de mais produtiva, torna o trabalho mais penoso. As condições de vida muitas vezes exigem do trabalhador mais do que ele poderia dar, e não raro se encontram dependentes químicos que, para executar o trabalho, afirmam “ter o diabo no corpo” (referindo-se às drogas).


A pior das conclusões, contudo, segundo a palestrante, é a que diz respeito à seleção feita pelas usinas, que “não levam em conta o critério de tempo à disposição, mas o de produção”. Para ela, a menos justa.

A juíza não escondeu a dificuldade de mudar esse quadro. Ela lembrou que a recompensa financeira é o que move esses trabalhadores, mas que “existe uma cultura entre eles de serem os melhores cortadores”. Apesar da legalidade da atividade do corte manual de cana, ela se pergunta “se o salário por produção dos cortadores de cana é compatível com os princípios da Constituição Federal”. E busca na Encíclica “Rerum Novarum” a definição que acredita ser a mais justa: “o trabalho humano deve ser considerado, na teoria e na prática, não mercadoria, mas um modo de expressão direta da pessoa humana”. Quanto ao ambiente de trabalho, ela completa, com base no mesmo texto, que “não seja lesada, nem no corpo, nem na alma, a dignidade da pessoa humana”.

O que diz a lei


A juíza Maria da Graça Bonança ressaltou que aos poucos os tribunais avançam no entendimento em favor dos cortadores. Ela citou um voto do desembargador da 15ª, Gerson Lacerda Pistori, que considera “draconiana” a cláusula da remuneração do trabalho por produção. Segundo o desembargador, “trata-se de situação que faz do trabalhador escravo de sua própria produtividade”, e por isso é correto reconhecer o seu direito a horas extras e adicional. A decisão inovadora, segundo a juíza, é apenas um passo, mas já aponta para futuras mudanças.


Maria da Graça recomendou aos novos magistrados que “olhem com mais cuidado as ações coletivas que tratem do assunto” e, nas ações individuais, defendeu, no mínimo, o pagamento de horas extras. Ela lembrou que quando essa ideia foi exposta no Congresso Rural do TRT da 15ª de 2007, em Barretos, ela ouviu que “a tese daria uma boa discussão jurídica”. Hoje ela espera mais, e acredita que se possa dar um passo à frente. Ela se referiu, com relação a mudanças possíveis e esperadas, ao Projeto de Lei 234/07, que introduz o artigo 13 na Lei 5.889/73, que “define como penosa a atividade do cortador de cana” e prevê ainda adicional de insalubridade em 40%, jornada de 6 horas diárias e 36 horas semanais, intervalos de 10 minutos a cada 90 trabalhados, além da vedação ao trabalho extraordinário e ao salário por produção.

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