Em Franca, servidores conciliam a Justiça do Trabalho com a dedicação às crianças e aos animais
Franca, a capital do calçado masculino no País, completa 190 anos no próximo dia 28 de novembro. Com quase 340 mil habitantes, deve seu nome à homenagem a Antônio José da Franca e Horta, governador da então Capitania de São Paulo de 1802 a 1808, época do surgimento do arraial que daria origem ao município.
Além de sua produção de sapatos, a cidade se orgulha também de ser um dos maiores polos do basquete no País. A Associação Francana de Basquetebol, ou simplesmente Francana, hoje chamada Franca Basquete Clube, detém, entre outras conquistas, 11 títulos paulistas, 10 brasileiros, 6 sul-americanos e 4 pan-americanos, além de ter sido duas vezes vice-campeã mundial, em 1975 e 1980.
O Fórum Trabalhista local, com duas varas do trabalho, está localizado na Rua Frei Germano, 2.310, e sua jurisdição inclui mais oito municípios: Cristais Paulista, Itirapuã, Patrocínio Paulista, Pedregulho, Restinga, Ribeirão Corrente, Rifaina e São José da Bela Vista. No total, cerca de 405 mil pessoas são atendidas pelo Fórum, que recebeu o Grupo Móvel da Presidência de Atenção às Unidades de Primeira Instância (GMP).
Criado pelo presidente do TRT-15, desembargador Flavio Allegretti de Campos Cooper, e coordenado pelo juiz Flávio Landi, o GMP é um canal direto de comunicação entre o 1º grau e a Presidência da Corte. Sua missão é identificar demandas e criar oportunidades de aprimoramento. As atividades do Grupo em cada unidade incluem uma reflexão conjunta acerca da qualidade de vida pessoal e profissional. Os participantes são convidados a responder um questionário com temas como relações interpessoais no trabalho e sintomas e fontes de estresse. Posteriormente, no retorno da equipe à sede do Tribunal, em Campinas, os resultados são analisados, e as conclusões, enviadas a todos os que participaram das atividades.
Outra missão do GMP é dar aos servidores da 15ª Região a oportunidade de conhecerem uns aos outros. A proposta é mostrar quem são e como vivem esses profissionais, que, espalhados por mais de cem cidades paulistas, são mais de quatro mil, somando os do próprio quadro do Regional com os cedidos por outros órgãos públicos. Só no ano passado, essa força de trabalho contribuiu de maneira decisiva para a Justiça Trabalhista da 15ª Região fazer chegar aos reclamantes quase R$ 3,2 bilhões, decorrentes de acordos ou condenações.
Entre a cidade e o campo
A diretora da secretaria da 2ª Vara do Trabalho (VT) de Franca, Leila Carla Lima Taveira, mineira de Santa Rita de Cássia, faz parte desse contingente desde 4 de março de 1987, quando o TRT-15, instalado em 5 de dezembro do ano anterior, ainda dava seus primeiros passos em direção ao posto de segunda maior corte trabalhista do País . "Foi meu primeiro emprego", observa Leila. "Nem tenho carteira de trabalho."
Sua mudança para Franca, porém, é anterior, aos sete anos. Ainda morava até então em território mineiro, na cidade de Ibiraci, ou mais precisamente numa vila na Usina Peixoto, no Rio Grande, onde seu pai, José de Lima, engenheiro agrônomo, era o responsável pelo estudo de impacto ambiental da unidade. A pequena Leila, a caçula da família, vivia lá uma infância de sonho, com as irmãs Laura e Laís. Sob a vigilância sempre próxima da mãe, Eva, as três não tinham nada que as impedisse de ser criança, na vila de não mais do que "três ruas e 15 casinhas, todas iguais", como descreve Leila. "Era uma vida muito boa."
No entanto, os problemas de saúde do pai levariam a família a trocar seu pequeno paraíso por Franca, a uns 40 quilômetros, mas mesmo assim seu José acabaria morrendo em 1983, aos 50 anos, depois de mais de 15 anos de luta contra o mal de Chagas. "Meu pai era, de fato, uma pessoa muito especial. Com ele aprendi que viver a vida é mais importante do que guardar dinheiro e acumular bens. E é assim que eu vivo."
Sonho realizado
O direito, garante a servidora, era um sonho já na infância, e o direito do trabalho, em particular, tornou-se uma paixão graças às aulas do professor Nelson Mannrich, titular da cadeira, à época, na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Franca, onde ela se formou – hoje Mannrich ocupa o mesmo posto na USP, em São Paulo. Não por acaso, Leila já fazia parte da Justiça do Trabalho da 15ª quando ainda estava no 3º ano do curso.
Começou no Fórum Trabalhista de Ribeirão Preto. A rotina de percorrer 180 quilômetros ida e volta durou pouco mais de dois anos. Em junho de 1989, ela já estava na então única Junta de Conciliação e Julgamento (denominação, à época, das atuais varas do trabalho) de Franca, posteriormente a 1ª VT da cidade. Foi assistente de juiz de 1994 a 2008 e assistente de cálculos até 5 de maio de 2012. No dia seguinte, começava sua trajetória no comando da secretaria da 2ª VT.
"É mais fácil lidar com processos do que com pessoas", sublinha Leila, na busca de resumir as agruras da missão. A diretora tem, todavia, uma "arma" poderosa a seu favor – uma serenidade difícil de ser abalada, salvo melhor juízo. "Procuro cultivar uma atitude de tranquilidade no meu dia a dia, e tento transmitir isso aos colegas." Ao falar deles, por sinal, Leila não economiza elogios. "Eu não sabia que a equipe era tão boa. Eles trabalham muito e muito bem, inclusive os que não são formados em direito."
A preocupação com o bem-estar do grupo é constante, garante a diretora. "Eu os incentivo a falar de casa, da família. Afinal, para que nós trabalhamos? Se alguém tem algum problema, pode se sentir à vontade para dividir com os demais, compartilhar, para que possamos ajudar", revela. "Às segundas-feiras, por exemplo, trocamos muitas ideias. Falamos sobre o que fizemos no final de semana, um filme que vimos. Isso não nos tira o foco do trabalho, não reduz nossa produtividade, pelo contrário. Faz com que a gente se sinta mais unido, como se fôssemos uma família. Aumenta a vontade de voltar no dia seguinte."
Cantinho novo
Se na "mens sana" Leila "nada de braçada", com seu jeito calmo e sua facilidade de lidar com as pessoas, no "corpore sano", nem tanto. Avessa confessa às atividades físicas – "odeio", enfatiza com veemência –, a diretora se rende, porém, à circunstância de ter quatro hérnias de disco e pratica a chamada "hidrobike". Também conhecida como aquaspin ou hidrospinning, a modalidade usa uma bicicleta ergométrica fabricada com material antiferrugem, para funcionar em piscinas. "Foi o que ‘se encaixou' melhor no que eu precisava, que era gastar energia e fortalecer o abdômen", justifica Leila.
Com os tempos vividos na pequena vila da Usina Peixoto – que desde 1968 se chama Usina Mascarenhas de Moraes – apenas na memória, Leila tem hoje um novo recanto, um sítio de 10 alqueires, que ela pode curtir com a filha Natália, às voltas com o vestibular para medicina, e seus dois Robertos: o filho mais velho, formado em matemática pela Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e "a descontração em pessoa", como diz a mãe, e o maridão, o administrador da propriedade, localizada na Rodovia Engenheiro Ronan Rocha (SP 345), que liga Franca a Patrocínio Paulista. "Produzimos cerca de 500 sacas de café por ano, e nossa produção é direcionada para o mercado externo, sobretudo a Itália. A exportação é feita por intermédio de uma cooperativa sediada em Franca e que reúne mais de dois mil cooperados", explica a servidora. Outra fonte de renda na propriedade é um pesqueiro rico em tilápias.
Leila e Roberto empregam quatro pessoas no empreendimento e, garante ela, lá o relacionamento entre empregadores e empregados é muito bom. "Eles sabem que têm patrões que conhecem a legislação e respeitam os trabalhadores", sublinha a diretora. "Dois ex-empregados nossos têm casa própria e carro, inclusive, coisas que eles conquistaram trabalhando no sítio", exemplifica.
A experiência como empregadora, afirma Leila, permite entender melhor tanto esse quanto o outro lado da relação trabalhista. Para a servidora, a maioria dos empregadores do Brasil não está apta para desempenhar essa função, o que, entende ela, põe lenha na fogueira alimentada pelos críticos do Judiciário Trabalhista brasileiro. "Ainda falta muito para uma parte da classe empregadora do País compreender que a Justiça do Trabalho não é um empecilho, não é um entrave à economia. Essa é a imagem que muitos patrões ainda têm da gente. Se eles fossem mais bem preparados e fizessem, por exemplo, um trabalho de prevenção aos litígios trabalhistas, isso traria reflexos inclusive à demanda que temos aqui, reduzindo a nossa sobrecarga de processos."
Saudade do mosqueteiro
O sítio dá a Leila a chance de vivenciar outra de suas paixões, os animais. Um, em especial, não lhe sai da memória: Athos, um cavalo castanho que, em 2011, já aos 18 anos, foi apresentado à filha de Leila, e dele a menina só se separou quando, em maio deste ano, o encantador "mosqueteiro" faleceu. "Foi amor à primeira vista. Ele era muito dócil, e até meu marido, que entende de cavalos, aprovou a compra."
Amante da vida no campo, Natália começou a praticar hipismo no início da adolescência e formou com Athos uma dupla vencedora. O alazão compensava a idade avançada – especialistas afirmam que aos 20 anos um cavalo já pode ser considerado idoso – com muita experiência. "Ele veio de Araraquara e saltava desde ‘pequeno'", diz Leila. Já em 2012, Natália e Athos venceram a Copa Premix, competição que reúne em Franca cavaleiros das quatro escolas de hipismo da cidade, além de competidores de outros municípios.
"Athos fazia parte da família", afirma Leila. "Ele ficava na escola de hipismo, onde recebia alimentação adequada, vitaminas e assistência veterinária e odontológica. Até das ferraduras eles cuidavam", lembra ela. "Athos era um doce. Tão dócil, que o dono da escola, o professor da Natália, nos pediu permissão para que as aulas inaugurais de alunos iniciantes fossem feitas só com ele", derrete-se a diretora. "Mas não era só isso. Ele era extremamente bom no que fazia. Na final da Copa Premix, Athos literalmente salvou a minha filha. Debaixo de chuva, ele saltou um obstáculo de uma forma incompreensível, sem a distância apropriada e com a pata errada, só para evitar a queda de Natália. O público o aplaudiu de pé. Noutra ocasião, num campeonato no Haras Leão, em Ribeirão Preto, promovido pela Sociedade Hípica da cidade, também foi possível ver o esforço de Athos para evitar a queda da minha filha. Ela errou a contagem dos passos e, quando chegou ao obstáculo, ele refugou, mas levantou o pescoço, para não deixá-la cair."
A dupla participava de competições de hipismo clássico, em provas em que os obstáculos têm 90 centímetros ou um metro. "Para esse tipo de disputa, é fixado o tempo ideal de percurso, em torno de 65 segundos", explica Leila. "Vence a prova quem mais se aproxima do tempo e não perde ponto. A pontuação diminui se o obstáculo é derrubado, quando o cavalo refuga ou se a dupla inicia a prova antes de o sino tocar, erra o percurso ou termina em tempo muito superior ou muito inferior ao limite fixado."
No Facebook, Natália postou um tributo a Athos, a quem ela chama de "meu herói": "(...) É imensurável a felicidade que me foi proporcionada por estar junto com ele. A relação de confiança e reciprocidade estabelecidas entre um cavalo e seu cavaleiro é de tamanha intensidade e sinceridade, que ainda não encontrei equivalência em nenhuma outra já por mim vivida (...). Foi ele, Athos, quem me permitiu a vivência dessa distinta relação e, por isso, eu lhe devo milhões de agradecimentos. Foi ele que me ensinou tanto e que, por sua docilidade, experiência e gentileza, tantas vezes se fez presente quando a minha técnica falhava. (...) Hoje fica um silêncio enorme, faltando aquele relincho que pedia carinho e cenoura. Foi-se embora meu alazão, mas sua lembrança estará sempre guardada em mim".
Retratando etnias
"As etnias são a marca de suas obras, o que vem ao encontro da essência da Justiça do Trabalho, à qual cabe atender a um público diverso", pontuou o desembargador Flavio Allegretti de Campos Cooper, durante a cerimônia de implantação do Processo Judicial Eletrônico (PJe) no Fórum Trabalhista de Franca, em 18 de dezembro de 2013. Era dos quadros de Sandra Roberta Lopes Sanchez, servidora da 1ª VT da cidade há 18 anos, que falava o magistrado.
Nascida em São Paulo, capital, ela mora desde os dois anos em Franca, onde se formou na Faculdade Municipal de Direito. Cursou também jornalismo e letras na Universidade Estadual de Londrina. Ainda criança, Sandra já desenhava e pintava, mas a relação com a pintura só foi retomada e consolidada quando a servidora já estava na Justiça do Trabalho, devido ao apoio dos colegas e juízes, que valorizam suas criações e incentivam a artista a expor permanentemente. "Eu me sinto bem no meu local de trabalho, por conviver com as pessoas com quem convivo. Isso me faz estar em paz e ser estimulada a produzir cada vez mais", garante ela.
Embora admire o estilo impressionista, Sandra afirma que procura fazer um trabalho intuitivo, sem buscar referências. É na sacada ao lado de seu quarto, num lugar só dela, um pouco bagunçado pela quantidade de telas, molduras e tintas, mas com espaço para horas de criação, que a servidora se sente tranquila para expressar sentimentos por meio das formas e cores. "Quando estou pintando, entro em outra dimensão."
Em Franca, entre outros lugares, Sandra já protagonizou exposições na Pinacoteca do município, onde exibiu a mostra "Raças", e na Justiça Federal, que também foi palco do trabalho da artista em Ribeirão Preto. Nesta última cidade, expôs ainda no Fórum Trabalhista e na Justiça Estadual.
Em prol dos necessitados
Zélia Donizete da Silva Roberto Giometi, também servidora da 1ª VT de Franca, onde completou 15 anos em maio passado, ingressou na JT da 15ª em 12 de março de 1997, inicialmente em Sertãozinho. Nascida em Itirapuã, cidade paulista que faz fronteira com Minas Gerais, ela participa de um trabalho desenvolvido pelo Centro Espírita Evolução – Casa da Sopa Mãe Emília há 18 anos no Jardim Aeroporto II, um dos bairros mais carentes de Franca. Toda terça-feira, a partir das 14 horas, a entidade distribui sopa aos moradores mais necessitados da localidade. No início, eram cerca de 50 famílias, mas, nessas quase duas décadas, uma melhora na condição socioeconômica de grande parte dos habitantes do bairro fez o número cair para algo entre 25 e 30. Se, por um lado, o trabalho impede Zélia de participar da atividade em todas as ocasiões, por outro ela é presença constante quando a terça-feira coincide com um feriado ou com suas férias.
Outra iniciativa da instituição ocorre ao sábados e já dura cerca de 15 anos, acrescenta a servidora. "É um trabalho de orientação religiosa e social a famílias desestruturadas, de acordo com a doutrina da entidade, que é a kardecista", detalha Zélia. "A participação mais intensa é das crianças. É possível perceber que, de maneira geral, elas ficam mais concentradas, mais participativas. A gente vê que elas estão meditando a respeito do que foi dito." Além do trabalho de evangelização, é servido um lanche aos participantes, e cada família – atualmente o número varia entre 15 e 20, estima Zélia – ainda leva para casa um pacote de pão e leite.
Tanto numa quanto noutra atividade a servidora está engajada há quatro anos. Seu grande incentivador foi seu marido, Carlos Augusto, falecido em 2013. "Ele começou uns dois anos antes de mim e, quando se aposentou, em 2010, passou a participar ainda mais, e eu me engajei também."
Empenho reconhecido
Dedicação é a marca de Cássio Pereira Mauro Filho, paulistano que, no último mês de agosto, comemorou seu 19º aniversário como servidor da Justiça do Trabalho da 15ª. Depois de três anos na sede do Tribunal, em Campinas, ele conseguiu transferência em 1998 para Franca, onde mora desde os cinco anos. É o administrador da rede de informática da 1ª VT da cidade, função que exerce desde 2007, paralelamente às suas demais atividades na secretaria, mas, nos primeiros 14 anos na unidade, esteve "na linha de frente", no balcão de atendimento ao público.
E seu desempenho lá não passou despercebido. Em outubro de 2011, detalha ele, Cássio foi o servidor do Judiciário de Franca mais votado pelos advogados da cidade, num concurso que incluiu todos os fóruns locais e parâmetros como gentileza, simpatia, educação e presteza. O reconhecimento ao trabalho de Cássio foi eternizado numa placa entregue a ele pela OAB francana, numa cerimônia realizada na Casa do Advogado da cidade.
A experiência de lidar com as pessoas Cássio adquiriu, no entanto, antes de ingressar na JT. Na terra do calçado masculino, ele foi vendedor do produto, tanto no atacado quanto no varejo, e conhecia bem a mercadoria. "Comecei no ‘chão de fábrica', na linha de produção, em 1986", lembra. "Meu primeiro serviço foi arrancar tachinha." Explica-se: como na época as colas não eram tão eficientes, era preciso usar tachas nas partes que eram coladas umas às outras, até que a cola secasse. Aí, era "só" retirar tachinha por tachinha, num exercício de paciência que, hoje em dia, graças à evolução das substâncias adesivas, tornou-se desnecessário, garante Cássio.
"Desde cedo eu lidei com o público. Minha adaptação ao balcão foi natural", diz ele, que chama a atenção para a importância dessa parte da secretaria da VT. "É um serviço nem sempre valorizado à altura do que merece, mas é a frente de tudo. É ali que a Justiça do Trabalho mostra muitas vezes como recebe as pessoas. Devemos dedicar uma atenção especial a elas, sobretudo às mais simples, sempre com muito respeito."
O homem e o burro
Cláudio de Freitas Marques é nascido em São João Batista do Glória, município do sudoeste de Minas, de onde saiu há 25 anos. Se ainda hoje a cidade mal passa dos sete mil habitantes, é possível imaginar que um quarto de século atrás ela não era exatamente, digamos, uma metrópole, e Cláudio teve de deixar a terra natal para realizar em Franca o sonho de estudar direito.
Começava aí uma mudança radical na vida desse oficial de justiça, cujo primeiro ofício foi o de ajudante de leiteiro. Isso significava mais precisamente auxiliar o próprio pai, Romes, conhecido como "Rominho". A consequência mais imediata dessa mescla da relação familiar com a trabalhista era a inexistência de salário para Cláudio, adversidade que ele "driblava" aproveitando algumas providenciais oportunidades. Acontece que, além de fazer chegar às casas do lugar o tão esperado leite, o caminhão de seu Rominho fazia também as vezes de transporte coletivo entre a cidade e uma comunidade rural conhecida como Babilônia, já no município vizinho de Delfinópolis. A renda advinda da cobrança das passagens complementava o orçamento familiar, que era enrobustecido ainda com um ou outro frete. Isso quando Rominho estava no comando da viagem, porque, nas ocasiões em que Cláudio dirigia sozinho, "embolsava" o valor pago pelos passageiros. "Era o único dinheiro que eu tinha nessa época", justifica o oficial de justiça. "Mas meu pai sabia. Tínhamos uma espécie de acordo ‘tácito' a respeito."
O trajeto tortuoso incluía um trecho de serra e, sobretudo quando chovia, recorda Cláudio, "sabíamos a hora de sair, mas não a de voltar". Num desses dias de chuva, o Ford F-11.000 de Rominho capotou justamente no percurso montanhoso, o que lhe custou – ao caminhão, queremos dizer – o encerramento precoce de suas atividades. Mas o que seria uma tragédia para a família de Cláudio acabou se transformando num caso exemplar de solidariedade. Cada fazendeiro da região doou um bezerro a Rominho, que, com o leilão dos animais – uns 50, lembra Cláudio – e mais o que amealhou com a venda do que sobrou do Ford, conseguiu comprar um Chevrolet D-70 usado, garantindo a continuidade do empreendimento da família.
Na cidade grande
Em Franca, onde chegou aos 19 anos, a vida para Cláudio também não foi fácil, a princípio. Indicado por um tio, arrumou emprego numa distribuidora de bebidas, para, mais uma vez, trabalhar lado a lado com um caminhão. O prometido cargo de motorista, no entanto, ficou só na promessa, e o mineirinho típico, de escassos 56 quilos, acabou de ajudante, carregando duas caixas de cerveja no ombro de cada vez. "Era alguma coisa entre 20 e 25 quilos. Quem trabalha muito tempo nisso cria um calo e até pelo no pescoço", garante ele. "É uma espécie de defesa do corpo", conta Cláudio, que não aguentou mais do que três meses no emprego.
Quando deixou a empresa, Cláudio estava em meio ao vestibular. Viu-se sem nada nem ninguém, sem nem "um passarinho para tratar", como diz ele, e pensou em fazer o caminho de volta para São João Batista do Glória. Entretanto, arriscou mais uma tentativa de emprego, como vendedor, numa loja de material de construção, o que acabou dando certo. "Fiquei sete anos na área", lembra o oficial de justiça, que abriria, inclusive, seu próprio estabelecimento no ramo. Nessa iniciativa, porém, a sorte não lhe sorriu, e logo o negócio naufragou. "Sorte" de seu Rominho, que, numa "herança" às avessas, herdou do filho o que restou da empresa, um F-13.000 que Cláudio comprara à prestação.
Em 1997, já formado em direito e devidamente aprovado no exame da OAB, começou a advogar, atividade que exerceria por cinco anos, mas, diga-se, mais uma vez sem sucesso financeiro. "Eu era um advogado de coração muito mole, ficava com dó de cobrar dos clientes. Se eu tivesse continuado, ia morrer de fome", diz Cláudio, com um jeitão mineiro para Milton Nascimento nenhum botar defeito. "Às vezes eles não tinham nem o dinheiro do ônibus. Cheguei a pagar a passagem de volta de cliente meu."
Por falar em jeito, o jeito foi fazer concurso. Em 2001, uma greve dos servidores do Tribunal de Justiça de São Paulo paralisou as atividades do Fórum da Justiça Estadual de Franca por três meses, dando ao então advogado a oportunidade de se preparar para o concurso que o TRT-15 realizou naquele ano. Na mosca! Ele foi o 1º colocado para o cargo de oficial de justiça no polo de Franca e, em 2 de maio de 2002, dia em que sua filha mais velha, Bárbara, completava 10 anos, tomou posse na 15ª Região. Além dela, Cláudio é pai de Maria Júlia, atualmente com 17 anos, e Beatriz, de 15.
Uma chance de futuro
A exemplo da colega Zélia e de tantos outros servidores da Justiça do Trabalho da 15ª, Cláudio é grato pelo que conquistou e, com a mesma generosidade com que socorria os clientes mais pobres, nos tempos de advocacia, procura retribuir. Desde 2006, ele é dirigente da Associação Solidária Futuro Feliz, uma creche localizada na Rua José Ferreira Cândido, 400, no Recanto Elimar, periferia de Franca. São cerca de 80 crianças, dos quatro meses aos quatro anos, atendidas em período integral – das 6h30 às 17h30. Além de cinco refeições diárias, elas têm direito a assistência médica e odontológica, conta Cláudio, que começou como secretário e atualmente é o tesoureiro da entidade. A cada duas semanas, sempre às quartas-feiras, um médico, servidor municipal, vai até a entidade para atender as crianças. Os cuidados aos dentinhos ficam por conta do Odontomóvel, iniciativa da Secretaria de Saúde de Franca voltada às creches conveniadas com a Prefeitura. Duas ou três vezes por ano, a Futuro Feliz recebe o micro-ônibus do programa, equipado com dois consultórios odontológicos. Além disso, o quadro de funcionários da entidade conta com 12 funcionários, incluindo educadoras com formação na área. "Algumas têm até pós-graduação", garante o oficial de justiça.
A creche gasta mensalmente de R$ 300 a R$ 350 com cada criança, estima o servidor. Aproximadamente 80% das despesas são custeadas com recursos recebidos da Prefeitura de Franca. O restante vem do empenho e da criatividade de pessoas como Cláudio. "Três vezes por ano, fazemos uma venda de pizzas. Vendemos de quatrocentas a seiscentas, mais ou menos, a cada vez, inclusive para os colegas aqui do Fórum Trabalhista, que sempre compram várias. Também promovemos todo ano um almoço beneficente, para cerca de quatrocentas pessoas, na quadra coberta da própria creche. Para completar, fazemos uma feijoada, uns quinhentos litros, que vendemos em porções já embaladas. Com isso, conseguimos fechar direitinho as contas. Hoje as coisas vão bem, até, mas houve época de eu ter de vender pizza na rua para conseguir pagar o décimo-terceiro dos funcionários da creche. Até de pedreiro eu já trabalhei lá, assentando tijolo nos muros."
Mas vale a pena, garante ele, para quem o trabalho da entidade pode surtir efeitos positivos na vida não só das crianças diretamente beneficiadas, mas também de suas famílias, especialmente dos pais. "Uma vez eu presenciei na creche a mãe de uma das crianças, uma mulher muito jovem, maltratando a própria filha e sendo mal-educada, grosseira até, com os funcionários. Em vez de responder de maneira também agressiva, eu chamei essa mãe para conversar, ela e a mãe dela, a avó da menina. Descobri que a criança não era bem cuidada. Entre outras coisas, eram as funcionárias da creche que compravam algumas coisas para a garotinha. A chupeta, por exemplo. Já no dia seguinte à conversa as coisas começaram a mudar. A criança chegou com o cabelo penteadinho, bem arrumada. O comportamento da família mudou."
As atividades na creche incluem a educação ambiental, acrescenta Cláudio. "A repercussão tem sido muito boa. Contamos com a participação do violonista Luís César, professor de música. Ele inclusive compôs uma canção a meu pedido, a "Zé Sujão", para estimular as crianças a fazer a reciclagem de materiais. Elas passam até a corrigir os erros dos pais em casa, no que diz respeito à preservação do meio ambiente."
E o burro?
Em 2010, Cláudio se juntou a uma comitiva de "muleiros", ou, num português mais rígido, "muladeiros", como registram o Aurélio e o Houaiss. Trata-se da "Comitiva Esperança", que anualmente percorre um caminho entre Franca e São João Batista do Glória. São 130 quilômetros, vencidos em três dias, parando aqui e ali. "Sempre alguém acolhe a gente."
Dessa aventura entrou na vida de Cláudio um indivíduo originalmente chamado "Chocolate", numa alusão à cor de sua pelagem, mas rebatizado de "Jiló". "Foi obra de meu pai. Ele disse que o Chocolate tinha cara de Jiló, e virou Jiló." É ele mesmo, o burro, que acabaria "permutado" por uma mula de nome estranho, "Indústria" (foto), mas que "é um animal muito manso e bom de lidar com o gado, acostumado a trabalhar inclusive na ‘chincha', que é quando você amarra uma vaca ou um bezerro, por exemplo, a outro animal – no caso, a Indústria – e arrasta até onde você quiser. Pode ser para embarcar num veículo ou levar ao curral, entre outros serviços", explica o servidor. Ele tem ainda o cavalo "Fumaça" e a mula "Cinderela" (foto). (Com informações do IBGE)
Texto Luiz Manoel Guimarães
Colaborou Leticia Boaretto
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