Em Rancharia, constata Grupo Móvel, servidores vivem um caso de amor com a Justiça do Trabalho

Conteúdo da Notícia

A jurisdição da Vara do Trabalho de Rancharia, instalada na Avenida Pedro de Toledo, 919–929, guarda um fato curioso. São cerca de 60 mil pessoas atendidas – metade delas, aproximadamente, na própria cidade onde fica a VT, e o restante em outros cinco municípios, incluindo os 835 moradores de Borá, a menor cidade do Estado de São Paulo e a segunda menor do País. Depois de liderar esse ranking por 22 anos, a bucólica localidade perdeu em 2013 o 1º lugar para a mineira Serra da Saudade, que tem 13 – isso mesmo – habitantes a menos.

As duas são as únicas cidades brasileiras com menos de mil moradores e estão diametralmente opostas a São Paulo, com seus incríveis 11.895.893 indivíduos. A população da capital paulista é 14.472 vezes maior do que a de Serra da Saudade. Borá, por sua vez, teria que multiplicar cada cidadão seu por 14.246 se quisesse ser tão povoada quanto a "Terra da Garoa". Para ser mais preciso, aliás, teriam que ser 14.246 vezes... e meia. Em tempo: os municípios de Iepê, João Ramalho, Nantes e Quatá completam a jurisdição da VT.

Município autônomo desde 5 de julho de 1935, Rancharia recebeu esse nome porque, na época de sua fundação, 20 anos antes, era um local de acampamento formado por "ranchos", alojamentos de trabalhadores que construíam a Estrada de Ferro Sorocabana, incluindo a estação ferroviária da cidade. Existe, no entanto, outra versão, segundo a qual o batismo vem de tempos mais antigos, quando tropeiros e boiadeiros costumavam passar por ali, vindos do Mato Grosso, e tinham o hábito de pernoitar em ranchos construídos no meio da pastagem. A economia do município, aliás, está baseada na produção agropecuária.

Qualidade de vida

A VT de Rancharia recebeu o Grupo Móvel da Presidência de Atenção às Unidades de Primeira Instância (GMP), criado pelo presidente do TRT da 15ª Região, desembargador Flavio Allegretti de Campos Cooper, para ser um canal direto de comunicação entre o 1º grau e a Presidência da Corte. Coordenado pelo juiz Flávio Landi, o GMP desenvolve atividades que incluem uma reflexão conjunta acerca da qualidade de vida pessoal e profissional. Os servidores de cada unidade visitada são convidados a responder um questionário com temas como relações interpessoais no trabalho e sintomas e fontes de estresse. Posteriormente, recebem um ‘feedback' com as conclusões das especialistas do Grupo no tema, a psicóloga Juliana Barros de Oliveira e a assistente social Maria Angela Caparroz Arelano Cordeiro.

O GMP também registra demandas de caráter estrutural ou administrativo, por intermédio da servidora Maria Auxiliadora Ortiz Winkel, assistente da Presidência do Regional. Já os problemas relativos à área de segurança são analisados pelos agentes Luís Cláudio da Silva e Jenner Eduardo dos Santos, que também integram a equipe. Outra missão do Grupo é traçar um perfil dos servidores da 15ª. A proposta é mostrar quem são e como vivem esses profissionais, ou pelo menos uma parte deles, que, espalhados por cerca de 110 cidades paulistas, são mais de quatro mil, somando os do próprio quadro do Regional com os cedidos por outros órgãos públicos.

Baú de histórias

Em Rancharia, por exemplo, trabalha Roberto Aparecido Soares do Amaral, oficial de justiça. Ele chegou a cursar matemática por três anos, na Unesp de Presidente Prudente, a cerca de 30 quilômetros de sua terra natal, Alfredo Marcondes, porém não concluiu o curso. Acabou se formando em direito na Instituição Toledo de Ensino, também em Prudente, em 1995.

O ingresso no serviço público foi em 1988, como investigador de polícia, mas apenas dois anos depois começaria a carreira de oficial de justiça, inicialmente no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Foram 15 anos lá, até a posse em 2005 na 15ª Região, onde começou na VT de Teodoro Sampaio, no Pontal do Paranapanema. Desde 2011, Roberto é oficial em Rancharia. "Completei em 6 de setembro 24 anos no cargo", orgulha-se ele. "É um trabalho muito solitário e sujeito não só à violência que aflige o cidadão comum, mas também à relacionada ao próprio desempenho da função. Por mais gentil que você venha a ser na rua, nunca poderá prever de que forma o destinatário da determinação judicial vai reagir. Um ato simples poderá resultar em algo extremamente complicado. E você estará ali sozinho. A verdade é que, a cada dia, o oficial sai de casa para trabalhar e não sabe se vai voltar. Por isso, todas as manhãs, antes de sair para o trabalho, peço a proteção de Deus, e à noite agradeço por tudo ter corrido bem."

Executado esquentado

Não por acaso, os oficiais de justiça costumam ser um "baú de histórias", e Roberto não é exceção. "Durante esses anos todos, vivenciei diversas experiências. Algumas aborrecedoras, outras cômicas. Se eu fosse contar tudo, com certeza daria um livro bem extenso", garante ele. "Uma vez, eu tinha de cumprir um mandado de penhora de um veículo. Pernoitei num hotel próximo à cidade da diligência e logo de manhã cedo eu estava em frente à residência do executado. Assim que cheguei, constatei que o veículo se encontrava na garagem, mas o executado estava dormindo e não atendia aos meus chamados. Postei-me de campana em frente à casa até a chegada da empregada doméstica. A princípio, ela se recusou a chamar o patrão. Foi preciso eu me identificar e lhe mostrar que estava ali para cumprir uma determinação judicial. A empregada fez cara de espanto, dizendo que as coisas iriam ‘ficar feias', pois o patrão era ‘um homem extremamente bravo e violento'. Eu respondi que, se fosse necessário, chamaria a polícia. Enquanto ela avisava o executado da minha presença, fui lavrando o auto de penhora. Em poucos instantes, o sujeito apareceu em altos brados e aos palavrões, e logo veio com um daqueles facões usados no corte de cana-de-açúcar, de forma ameaçadora, gesticulando perto de mim. Puxei o celular e tentei diversas vezes contato com o 190, da Polícia Militar, mas o celular não funcionava naquela cidade. Então, simulei que havia falado com um policial, e o sujeito se amansou um pouco. Formalizei o auto e fui embora. Infelizmente, surgiram outras penhoras contra o mesmo executado, mas, daí por diante, sempre solicitei o acompanhamento policial."

Cachorro e atrevido

Nem só o bicho homem tem criado problemas para Roberto, aliás. "Noutra ocasião, fui cumprir duas notificações iniciais numa fazenda distante. Estrada de terra, meio-dia, calor escaldante. Cheguei ao destino e encontrei a porteira trancada a cadeado. Subi na porteira e avistei, a uns dois quilômetros, mais ou menos, uma colônia de moradores. Não pensei duas vezes: pulei a porteira e parti rumo às casinhas. No trajeto, cruzei com um grupo de crianças que iam para a escola, e elas me advertiram que, na colônia, havia vários cães bravos. Ao chegar às casas, fui atendido pela esposa do administrador da fazenda, embaixo de uma árvore, porque o sol estava realmente muito quente, e logo os tais cachorros nos rodearam. Eles eram mesmo enormes. A mulher disse que eu poderia ficar tranquilo, que eles não me morderiam, mas, pelo sim, pelo não, eu nem me mexia." De fato, lembra o oficial, morder, eles não morderam, mas nem por isso Roberto escapou de sair do lugar com uma desagradável "lembrança" dos animais. "Enquanto eu fazia a notificação e colhia o recibo de ciente, um dos cachorros, sem que eu percebesse, aproximou-se e urinou com vontade em minha perna esquerda. Acho que nunca vou esquecer. Minha calça ficou totalmente encharcada. Eu reclamei, mas o máximo que a senhora fez foi tentar afastar o bicho dizendo ‘xô, cachorro, vai pra lá'. Nem um pedido de desculpas ela fez. Depois de tudo isso, sujo e fedido, ainda tive que ir para outra cidade e trabalhar o resto do dia."

"Patinho feio"

Menos mal se os entreveros de Roberto com o mundo animal se restringissem aos cães. Infelizmente, não é o caso. "Um dia, tive de ir a uma favela numa cidade da jurisdição, a uns noventa quilômetros de Rancharia, porque os Correios não entregam correspondências lá. Fui recebido pelo pai do destinatário da notificação. De repente, senti uma dor na panturrilha. Era um ganso me bicando. Fiquei uns três dias com a perna dolorida, e as escoriações demoraram cerca de um mês para sumir. Mais uma vez, nem desculpas eu ouvi. O pai do destinatário se limitou a dizer que o ganso era ‘muito bravo', coisa que eu já percebera, mas de outra forma."

Roberto, no entanto, não se deixa abater. "Apesar de todas as dificuldades comuns ao desempenho das atividades inerentes ao meu cargo, eu me considero uma pessoa feliz e realizada no trabalho. Por isso, sempre procuro fazer o melhor, dedicando-me ao máximo para obter resultados satisfatórios. O oficial de justiça não é somente a ‘longa manus' do juízo, mas também os seus olhos."

Compromisso

"Justiça se faz com sinceridade, com comprometimento e com respeito às pessoas." Com esses valores, o assistente de diretor de secretaria da VT de Rancharia, José Antonio Valente Baptista, conta que já experimentou experiências extremamente marcantes, auxiliando a juíza titular da unidade, Mari Angela Pelegrini, como mediador em audiências de tentativa de conciliação em processos já em fase de execução. Um exemplo, lembra ele, é uma ação que envolvia os herdeiros de um trabalhador falecido (a viúva e os filhos) e já se arrastava havia vários anos. "Após duas rodadas de intensas negociações, chegamos a um bom termo, com um acordo no valor de aproximadamente 450 mil reais."

Mais do que a solução em si do processo, o que mais marcou José Antonio na ocasião foi a reação das partes. "Após tudo concluído, tanto os exequentes quanto o executado e seus advogados me agradeceram, de modo efusivo, pelo meu empenho e pela minha dedicação na busca de resolver o embate. Também me chamou a atenção a forma como as partes se cumprimentaram mutuamente depois do acordo, passando a sensação de que, verdadeiramente, um novo momento se iniciava em suas vidas, de paz e tranquilidade. Tive a impressão de que eles sentiam realmente que, enfim, a Justiça lhes havia chegado. O compromisso social de nossa atividade profissional na Justiça do Trabalho deve desembocar, sempre, na valorização humana, no respeito às pessoas. E, quando as partes percebem isso, o ‘feedback' acontece e as lides são resolvidas amigavelmente."

Nascido em Mariápolis, cidade do oeste paulista, de apenas quatro mil habitantes em números atuais, José Antonio foi educador – professor e diretor de Serviço de Escola Técnica do Centro "Paula Souza", em Adamantina – antes de ingressar na Justiça do Trabalho, na própria VT de Rancharia, em 21 de agosto de 1997. Com licenciatura plena em matemática, ele se formou em direito já como servidor da JT, "entusiasmado com a nova carreira". Dos 17 anos na 15ª, 16 foram na condição de assistente de diretor, "função que exerço com muito orgulho", conforme enfatiza José Antonio.

Altos e baixos

A vida não começou fácil para Maurício Farias de Souza. Diretor da secretaria da VT de Rancharia, ele nasceu na zona rural de Martinópolis, município da região de Presidente Prudente, e lá a família – além dele, a mãe, três irmãs e os avós e tios maternos – trabalhou em regime de arrendamento rural, recebendo do proprietário das terras uma porcentagem da produção. Aos oito anos, Maurício já trabalhava nas lavouras de café, milho e, principalmente, amendoim.

Foram três anos de trabalho duro na roça até que, em julho de 1969, dona Maria, a mãe de Maurício, preocupada em proporcionar aos filhos a oportunidade de prosseguir nos estudos, resolveu mudar para a cidade. Nem por isso o menino deixou de trabalhar. Depois de dois anos ganhando a vida como engraxate, ele foi levado pela mãe ao Cartório do 1º Ofício de Martinópolis, onde Maurício conseguiria o seu primeiro emprego. "Foi em outubro de 1971, precisamente no dia 12, data escolhida por minha mãe, devota de Nossa Senhora Aparecida e um exemplo, para mim, de honestidade, solidariedade, humildade e religiosidade. Naquele dia inesquecível teve início minha longa carreira a serviço da Justiça", lembra Maurício, que, além de "office boy", trabalhava em atividades notariais, na lavratura de procurações e escrituras, e processuais. "Aos 17 anos eu já era datilógrafo de audiência."

O trabalho forense acabaria por estimular Maurício a começar em 1978 o curso de direito, concluído em 1981, na Instituição Toledo de Ensino, em Presidente Prudente, cidade onde, aliás, ele ingressaria na Justiça do Trabalho, em 5 de maio de 1980, na então única Junta de Conciliação e Julgamento (JCJ) – denominação dada à época às unidades de 1ª instância da JT – local, após ser aprovado em concurso público. Depois de trabalhar em Araçatuba de janeiro de 1984 a novembro de 1985, retornou a Prudente e, nessa segunda passagem pela Justiça Trabalhista de lá, teve seu primeiro contato direto com Rancharia, graças a um serviço de "JCJ itinerante" que era prestado no município. Uma vez por semana, Maurício ia à cidade para lavrar reclamações trabalhistas verbais, de trabalhadores não assistidos por advogados. A iniciativa incluía a realização de audiências em Rancharia, nas quais o servidor também atuava. Curiosamente, os mesmos serviços também eram prestados em Martinópolis, cidade natal de Maurício, dando a ele a chance de trabalhar na "terrinha" novamente.

Com a criação de novas JCJs para o interior paulista, graças à Lei 7.729, de 1989, o servidor tomou uma decisão que em pouco tempo daria contornos definitivos à sua carreira. Em fevereiro daquele ano, embarcou num trem da Ferrovia Paulista S.A., a extinta Fepasa, e rumou para Campinas. Seu destino final era a sede do TRT da 15ª Região, então com pouco mais de dois anos de existência. O objetivo? Candidatar-se à direção da secretaria de uma das novas unidades. A jornada foi longa e cansativa, lembra Maurício. "Só depois de horas eu consegui uma poltrona para sentar", conta ele, que na volta passaria pelo mesmo desconforto.

Mas valeu a pena. Com o terno "visivelmente amarrotado pela viagem", como ele detalha, e mesmo sem ter agendado a reunião previamente, foi recebido pelo então presidente do TRT-15, desembargador Pedro Benjamin Vieira, maior protagonista da criação do Tribunal. "Ele me atendeu de modo peculiarmente cortês e anotou todas as unidades nas quais eu tinha interesse de trabalhar, inclusive na ordem de minha preferência." Seis meses depois, Maurício seria nomeado diretor na JCJ de Botucatu, e lá entraria no exercício do cargo no mês seguinte, setembro de 1989.

"O volume de trabalho era desumano. Eu começava rotineiramente às 7 da manhã, e na maioria das vezes ia até às 22 horas. Quando eu saía para trabalhar, meus dois filhos, Maurício Júnior e Murilo, na época com três e um ano [a filha, Mayara, só nasceria em 1991], ainda estavam dormindo, e quando eu chegava de volta eles já tinham ido se deitar. Além disso, sacrifiquei muitos finais de semana e feriados trabalhando. Por essas e outras, devo muito do que conquistei ao apoio e à compreensão da minha família. Sem isso eu não teria conseguido fazer meu trabalho com o tempo e a dedicação que eram necessários."

Entre muitas outras atividades, Maurício frequentemente acompanhava o então juiz presidente da JCJ, Bernardino de Azevedo Carvalho, nas inspeções judiciais que o magistrado comumente fazia em indústrias de açúcar e álcool ou em frentes de trabalho no meio rural. "Perdi a conta de quantas foram. Eu lavrava o auto da inspeção ‘in loco', numa máquina de escrever que carregava comigo. Às vezes eu conseguia improvisar uma mesa para datilografar, mas era comum trabalhar com a máquina apoiada no capô do carro ou até nas próprias pernas."

O alívio só viria em março de 1991, quando Maurício conseguiu retornar ao oeste do estado, graças a uma remoção para a recém-criada JCJ de Adamantina. Em novembro de 1992 desembarcou finalmente na unidade de Rancharia, à época também "zero quilômetro". Mas quem disse que seria fácil? "Comecei trabalhando nos preparativos da inauguração. Nos dois primeiros meses, eu era o único servidor lotado, a ponto de, para ir ao banheiro, precisar pôr um aviso na porta da secretaria, pedindo para as pessoas aguardarem." A situação só começou a se normalizar em janeiro de 1993, com a chegada de três servidoras cedidas pela Prefeitura local – duas delas, Maria Durvalina das Flores e Cristiane Aparecida Bonanato Zillig, permanecem na unidade até hoje – e duas oficiais de justiça, recorda o diretor.

Trinta e cinco anos na JT

A seis meses de completar 35 anos na Justiça do Trabalho, 25 dos quais como diretor de secretaria, Maurício se orgulha de ter feito "de tudo" em sua trajetória na JT, da autuação do processo até o arquivamento. "Até colar selo postal nas correspondências eu fiz", detalha ele, que, numa ocasião em que a VT ficou sem o funcionário terceirizado da limpeza, chegou a varrer a unidade e recolher o lixo. Segundo o diretor, foram muitas as ocasiões em que, em plenas férias, pescando com amigos, revezava-se entre o lazer e o trabalho, ora no anzol, ora em alguns processos que careciam de uma atenção mais urgente. "Por sorte a turma compreendia bem", diz agradecido o diretor, que se intitula "torcedor fervoroso" da Justiça do Trabalho. "É meu time do coração."

Hoje Maurício vive a realidade de trabalhar com o Processo Judicial Eletrônico (PJe), concretizando, assim, antes da aposentadoria já não tão distante, uma expectativa alimentada ao longo dos últimos anos, como afirma ele. Ao mesmo tempo, lamenta não ter guardado a ferramenta que usava para plantar, no seu primeiro trabalho, ainda na zona rural, ou a caixa de engraxar sapatos, pintada na cor predileta, o amarelo, ou ainda uma das canetas-tinteiro com que escreveu nos livros e processos na Justiça Estadual. (Com informações da Prefeitura de Rancharia, do Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal – Cepam – e do IBGE)

Por Luiz Manoel Guimarães

Unidade Responsável:
Comunicação Social