Em Ubatuba, terra do verão em SP, servidores são testemunhas de parte da história da JT e do País

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 Na Vara do Trabalho da cidade está o mais antigo servidor da 15ª Região
ainda em atividade, e o diretor da secretaria da VT fala um pouco da
história do pai, que foi perseguido pela ditadura militar

Texto e fotos: Luiz Manoel Guimarães
Colaborou Leticia Boaretto

A conta varia de pessoa para pessoa, indo de 70 a mais de cem, dependendo da fonte. Deixando a exatidão de lado, a quantidade e a diversidade das praias de Ubatuba fazem do município um dos destinos turísticos favoritos dos paulistas. Não por acaso, a cidade, cortada pelo Trópico de Capricórnio, é palco do Solstício de Verão, em 22 de dezembro, evento que marca oficialmente o início da estação mais quente do ano.

Sobretudo na alta temporada, entre os meses de dezembro e março, e nos feriados prolongados, centenas de milhares de turistas multiplicam a população de Ubatuba (segundo o IBGE, são cerca de 85 mil residentes fixos) em busca de muito sol – que nem sempre aparece, é verdade – e de delícias como o azul-marinho, receita caiçara à base de peixe e banana verde, preferencialmente a nanica. Graças à liberação do tanino pela fruta, dizem os especialistas, o ensopado adquire uma cor azulada, daí o nome.

Fundada em 28 de outubro de 1638, Ubatuba é uma das cidades mais antigas do Brasil. Lá, 75 anos antes, Anchieta teria escrito (e memorizado!) nas areias da praia, durante os meses em que conviveu com os índios tamoios, seu famoso poema dedicado à Virgem Maria, com mais de cinco mil versos.

A Vara do Trabalho (VT) do município, localizada na Avenida Rio Grande do Sul, 691, recebeu o Grupo Móvel da Presidência de Atenção às Unidades de Primeira Instância (GMP), criado pelo presidente do TRT da 15ª Região, desembargador Flavio Allegretti de Campos Cooper, como um canal direto de comunicação entre as unidades visitadas e a Presidência do Tribunal. Coordenado pelo juiz Flávio Landi, o Grupo tem por objetivo identificar demandas e criar oportunidades de aprimoramento. Além disso, com a criação do GMP, o desembargador Cooper almeja também proporcionar aos servidores da JT da 15ª a oportunidade de conhecerem uns aos outros. A ideia é mostrar quem são e como vivem esses profissionais, dar um rosto àqueles que, até então, distribuídos por mais de cem cidades do interior paulista ou dos litorais norte e sul do estado, eram apenas números.

Decano

Na VT de Ubatuba, por exemplo, trabalha ninguém menos do que o servidor mais antigo da 15ª. Francisco Carlos Araújo Silva completa, no próximo dia 18 de julho, nada menos do que 40 anos como servidor da Justiça do Trabalho, carreira iniciada ainda na 2ª Região. Quando ele ingressou na JT, havia apenas 11 dias que a então Alemanha Ocidental vencera a revolucionária Laranja Mecânica holandesa de Johan Cruyff, na histórica final da Copa do Mundo de 1974, e Emerson Fittipaldi conquistaria o bicampeonato da Fórmula 1 em pouco menos de três meses. A Ponte Rio-Niterói havia sido inaugurada apenas quatro meses antes, e o trágico incêndio no edifício Joelma, em São Paulo, uma das maiores tragédias do gênero na história do País, mal completara cinco meses. No campo político, Perón morrera 17 dias antes, e a renúncia de Nixon ao governo dos Estados Unidos se daria em meros 22 dias. Graças à Revolução dos Cravos, Portugal acabara de se libertar, em 25 de abril daquele ano, de uma ditadura de mais de quatro décadas.

Ao ingressar na JT, Francisco tinha apenas 20 anos, mas desde os 18 já era servidor público (também por concurso, aliás), na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), no cargo de contínuo. "Eu trabalhava no protocolo, recebendo os projetos de lei. Sobrava tempo para estudar, e eu passei no concurso para a Justiça do Trabalho", detalha Francisco, que, na Alesp, acompanhava no Diário Oficial a abertura de novos concursos públicos.

Paulistano do bairro de Santana, na JT ele ficou lotado inicialmente na capital, mas em 1977 conseguiu a transferência para Guarulhos, onde morava desde os seis anos. Quando foi criado o TRT da 15ª, em 1986, Francisco, que a essa altura residia em São José dos Campos, no Vale do Paraíba, preferiu passar a fazer parte do novo Regional. Em São José, trabalhou inclusive com o então juiz Flavio Allegretti de Campos Cooper, que, como magistrado de 1ª instância, atuou por mais de 10 anos no Fórum Trabalhista da cidade.

Na VT de Ubatuba desde 2006, Francisco lida atualmente com a fase de execução do processo trabalhista e já exerceu a função de assistente de cálculos, entre outras. Formado em direito desde 1981 e já aprovado no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, ele planeja se aposentar justamente este ano, para advogar. "Ainda me sinto em condição de produzir muito", garante o servidor.

Nova geração

No que concerne à antiguidade no quadro de servidores da Justiça do Trabalho da 15ª Região, Ana Claudia Paneque Peres, também da VT de Ubatuba, está na condição diametralmente oposta à de Francisco. No último dia 18 de janeiro, ela completou dois meses como servidora da JT da 15ª.

Fisioterapeuta formada pela PUC-Campinas, Ana atuou por 11 anos na fisioterapia hospitalar, mais especificamente na área cardiopulmonar. "Meu trabalho consistia basicamente em monitorar a capacidade respiratória dos pacientes e ajudá-los a aumentá-la", sintetiza a servidora, que fez especialização na área no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, entre 2000 e 2002. Nessa época, ela trabalhava num hospital pela manhã e noutro à tarde, e ainda fazia plantões, cuidando desde de enfermos em estado menos grave, em enfermarias e ambulatórios, até casos críticos, de pessoas internadas em unidades de terapia intensiva, inclusive pacientes em coma. "Eu só folgava um final de semana por mês", recorda ela, que, para completar, não tinha registro em carteira. Além da carga e da complexidade do trabalho e da falta de direitos trabalhistas, pesava também sobre Ana o sofrimento dos pacientes. "Eram pessoas muito simples", lembra ela, que recorda em especial do caso de um rapaz de apenas 18 anos. "Ele havia sido atropelado e ficou internado dois meses no HC, com uma traqueostomia, sem receber nenhuma visita, inclusive no Natal e no Ano Novo."

Curiosamente, Ana tem com Francisco Carlos, além do emprego atual, pelo menos outras duas coisas em comum. Assim como o colega, ela também é nascida na capital (no bairro de Perdizes) e se mudou para São José dos Campos (no caso de Ana, em 2004). Mais do que a qualidade de vida do interior, a mudança a deixou novamente perto dos pais, Gentil e Carmen, que já residiam na cidade, e lhe possibilitou fazer o mestrado em engenharia biomédica, também ligado à área respiratória, na Universidade do Vale do Paraíba (Univap), entre 2005 e 2006.

Três anos mais tarde, incentivada pelo pai, engenheiro de formação, mas que, desempregado aos 50 anos, abraçou a carreira de fiscal do ISS, Ana finalmente prestaria o concurso público que a levaria à JT da 15ª. No ano anterior, ela se casou com Thales, empresário em São José dos Campos, e há oito meses se tornou mãe de Maria Luíza.

Na VT de Ubatuba, Ana está fazendo principalmente o trabalho de atendimento ao público, no balcão.

Com a história até na carteira de identidade

O nome chama a atenção, não tem jeito: Lenine Castro dos Santos. Nascido na pequena Palmeira d'Oeste, no noroeste paulista, mas criado desde os seis anos em São Joaquim da Barra, na região de Ribeirão Preto, ele é o diretor da secretaria da VT de Ubatuba e completa 17 anos na JT da 15ª em 5 de março próximo. Sua carreira, no entanto, começou na 18ª Região (GO), em dezembro de 1994. Na Justiça do Trabalho goiana, Lenine ingressou como analista judiciário na especialidade contabilidade e foi chefe da área na Secretaria de Orçamento e Finanças do TRT-18. Entre outras atividades, emitia parecer em processos de licitação, atestando se as empresas "tinham ou não a estrutura financeira necessária ao cumprimento de todos os termos do contrato".

A razão do nome não poderia ser outra. O pai de Lenine, João dos Santos, de quem o filho fala com orgulho, era comunista "de carteirinha", filiado ao extinto PCB nos anos 1960, legenda pela qual chegou a ser candidato a vereador em São Joaquim da Barra. Com o início da ditadura militar, em 1964, foram cassados os direitos políticos de João, que se viu obrigado a fugir permanentemente do regime, iniciando uma peregrinação por várias cidades. Como era eletrotécnico, foi para o noroeste de São Paulo, para trabalhar na montagem de turbinas de usinas hidrelétricas como as de Ilha Solteira e Engenheiro Sousa Dias, no Rio Paraná, obras iniciadas naquela década. Morou em Votuporanga, depois em Pereira Barreto, e finalmente em Palmeira d'Oeste, onde nasceu Lenine, em pleno 1968, ano da Revolução de Maio, na França, da Passeata dos Cem Mil, pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro, da Primavera de Praga e da edição do Ato Institucional nº 5, o malfadado AI-5, o ‘golpe dentro do golpe", que fechou o Congresso Nacional e revelou a face mais cruel da ditadura. Foi, como diz o jornalista Zuenir Ventura, em uma de suas mais importantes obras, "O Ano que Não Terminou".

Fuga cinematográfica

Para escapar dos agentes enviados a São Joaquim da Barra pelo regime, João protagonizaria uma fuga digna de um filme de ação, conta Lenine. As rodovias locais já estavam fechadas, mas, avisado pelo patrão, ele conseguiu sair da cidade num trem de carga que ia para Ribeirão Preto, ao qual chegou engatinhando nos trilhos da velha Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, escondido pela erva-cidreira que crescia ao longo da ferrovia.

Vários amigos de João não tiveram a mesma sorte e foram presos pelo regime, incluindo José Ivo Vannuchi, prefeito de São Joaquim da Barra na gestão 1993-1996. Preso em 1970, aos 21 anos, Vannuchi foi torturado e sofreu, inclusive, perfuração do tímpano direito, segundo relatório da Rede Brasil de Direitos Humanos.

Ironicamente, João acabaria falecendo com apenas 45 anos, em 1983, vítima de uma infecção contraída em Conceição do Araguaia, município do sudeste paraense, aonde foi para trabalhar na montagem de um frigorífico de uma empresa sediada em Sertãozinho (SP). Morreu durante o voo que o levaria de volta a Ribeirão Preto. "Meu pai se correspondia com Miguel Arraes", detalha Lenine, referindo-se ao político que, ícone da esquerda brasileira, por três vezes foi governador de Pernambuco.

Mais irônica ainda foi a forma como Lenine ingressou no serviço público, antes de ser servidor da Justiça do Trabalho. Em 1º de agosto de 1987, ele iniciou carreira na Aeronáutica e lá ficou por mais de nove anos, chegando ao posto de segundo sargento. No entanto, o "nome de guerra" – ele mesmo, "Lenine" –, ainda que em tempos de redemocratização do País, "incomodava os mais antigos", lembra o servidor, divertindo-se. "Quando eu disse que ia votar no Lula, na eleição presidencial de 1989, quiseram até me prender." A experiência, por outro lado, trouxe, na opinião de Lenine, um aprendizado com reflexos positivos ainda hoje em sua vida. "A carreira militar me ensinou muito sobre espírito de equipe, sobre saber coordenar, liderar, ter disciplina", resume.

Prestes a comemorar bodas de prata (em 26 de maio de 2015) com Cássia, sua namorada desde os 15 anos, o servidor guarda ainda hoje admiração por algumas figuras históricas do comunismo, como o próprio Arraes e o ministro dos Esportes, Aldo Rebelo (PCdoB-SP), bem como o "xará" Vladimir Lenin, maior expoente da Revolução Russa de 1917, e Leon Trotsky, que perdeu para Stalin a disputa para suceder o primeiro líder da União Soviética. "Deveria ter sido o Trotsky", avalia Lenine, que também inclui na lista o outro "responsável" por seu nome composto, Fidel Castro, comandante da Revolução Cubana. Já quanto à ideologia comunista, o apreço, tão forte no pai, João, persiste ainda em Lenine, mas lado a lado com o descrédito em sua efetivação. "O comunismo, na essência, é muito bonito, mas na prática as ambições humanas impedem que ele se torne realidade."

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Comunicação Social