“Crise de identidade”: no congresso do TRT, jurista português aborda as mudanças recentes no direito do trabalho na Europa

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Por Luiz Manoel Guimarães

Mestre e doutor em ciências jurídico-empresariais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, na qual leciona, João Leal Amado é coordenador da disciplina direito do trabalho na Universidade Lusófona do Porto. Membro da direção da Associação Portuguesa de Direito do Trabalho e da Associação Luso-Brasileira de Juristas do Trabalho, ele proferiu a conferência inaugural do 15º Congresso Nacional de Direito do Trabalho e Processual do Trabalho, encontro que teve início na manhã desta quinta-feira, 11, no Theatro Municipal de Paulínia. Amado falou sobre "As perspectivas do direito do trabalho no continente europeu".

Coube ao ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), apresentar o jurista português. "Se, por um lado, a livre iniciativa é a 'mola mestra' da economia de mercado, por outro, o trabalhador é quem concretiza os objetivos da livre iniciativa. Não há um sem o outro", ponderou Belmonte, começando a traçar um paralelo entre a situação atual no Brasil e o tema da conferência de Amado. "Mas sempre que nos vemos em meio a uma crise econômica, os direitos trabalhistas são questionados", criticou o ministro.

Segundo ele, a média de permanência do trabalhador brasileiro no emprego é de apenas dois anos. "Embora ainda tenhamos uma taxa de desemprego razoável, girando em torno de 7 ou 8%, essa rotatividade da mão de obra no País agrava o problema, gerando uma sangria no Fundo de Amparo ao Trabalhador, o FAT, para custeio do seguro-desemprego, bem como nos recursos do FGTS, que sofre saques constantes. Nem mesmo a multa de 40% sobre o saldo do FGTS, aplicável aos casos de demissão imotivada do trabalhador, tem conseguido frear essa ciranda. É uma penalidade que não está protegendo o emprego e acaba sendo repassada aos produtos ou serviços oferecidos pelas empresas. Não inibe a despedida sem justa causa e gera um custo para toda a sociedade", ponderou Belmonte, para quem o Brasil vive "uma falta generalizada de garantia do emprego". As consequências dessa conjuntura são sentidas diretamente pela Justiça do Trabalho, "que é a 'justiça dos desempregados'", sublinhou o ministro.

Já na Europa, Portugal incluído, a economia cresceu a partir de fundamentos como, justamente, "a concessão de direitos trabalhistas, incluindo a estabilidade, com a exigência de motivação para a dispensa do trabalhador e a vedação à demissão coletiva", argumentou Belmonte. Nos anos de 2003 e 2009, no entanto, lecionou o magistrado, mudanças na legislação trabalhista portuguesa trouxeram alterações significativas a esse quadro. "E, para afalar sobre isso, ninguém melhor do que o nosso conferencista."

Falando nele, Amado começou manifestando espanto com as dimensões do congresso. "Em Portugal, até pelo tamanho da população, é praticamente impensável um evento assim, com mais de mil pessoas. Participar de um encontro desse porte com certeza é uma oportunidade que não se pode desprezar. Temos muito a ganhar nessa troca de ideias entre nossos países."Quanto ao tema que logo iria abordar, o jurista foi enfático: "É impossível ser otimista neste momento na Europa. Lá, o direito trabalhista está em crise. Este é o mote de minha fala aqui". Não por acaso, "Direito do trabalho – um ramo do ordenamento jurídico em crise identitária" foi o título dado pelo professor a sua conferência.

Inspiração inesperada

"Os salários correntes do trabalho dependem do contrato estabelecido entre duas partes, cujos interesses não são, de modo algum, idênticos. Os trabalhadores desejam obter o máximo possível; os patrões, dar o mínimo. Os primeiros se unem para elevá-los; os segundos, para rebaixá-los. Não é difícil, no entanto, prever qual das partes vencerá na disputa e forçará a outra a aceitar suas condições. Os patrões, ao serem em menor número, podem se unir facilmente. E, além disso, a lei autoriza, ou pelo menos não proíbe, enquanto proíbe as uniões dos trabalhadores. Não temos leis parlamentares contra a associação para reduzir salários; mas temos muitas contra as uniões que tendem a aumentá-los. Além disso, em tais confrontos, os patrões podem resistir durante muito mais tempo. Um proprietário de terras, um colono, um comerciante ou um fabricante podem, normalmente, viver um ano ou dois com os capitais que já adquiriram, sem ter que empregar nenhum trabalhador. Em troca, muitos trabalhadores não poderiam subsistir uma semana, alguns poucos poderiam fazê-lo durante um mês, e um número escasso deles poderia viver durante um ano sem emprego. Ao longo prazo, o trabalhador é tão necessário para o patrão como este o é para ele, mas a necessidade do patrão não é tão imediata." Foi com esse trecho, extraído de uma das mais famosas obras da literatura político-econômica mundial, que Amado começou a dissecar o tema de sua conferência. Se alguém imaginou que se trata de "O Capital" - cujo primeiro volume foi lançado em 1867 pelo alemão Karl Marx (1818-1883) -, a que muitos se referem como "a bíblia do comunismo", ledo engano. Trata-se nada mais, nada menos do que "A Riqueza das Nações", escrita quase um século antes pelo escocês Adam Smith (1723-1790).

"É o reconhecimento de que se trata de uma relação desigual", sublinha Amado. "O próprio 'pai do liberalismo econômico', como Smith ficou conhecido, reconhece que os interesses envolvidos nessa relação são marcadamente conflituais", reforça o professor. "E nela o trabalhador envolve profundamente a sua própria pessoa, investe algo que não é separável dele mesmo", acrescenta o jurista. Nesse desequilíbrio de forças reside, leciona ele, "o 'código genético' do direito do trabalho, que, desde a origem, é um direito de tutela do trabalhador, concebido como direito social, destinado a assegurar o trabalho digno e civilizar a relação de poder que se estabelece entre patrões e empregados".

Após uma consolidação que se deu sobretudo a partir da Declaração de Filadélfia, adotada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1944, o direito do trabalho viveu em Portugal "trinta gloriosos anos", como descreve Amado. "No último quarto do século XX, no entanto", prossegue ele, "ganhou força a crítica à 'rigidez legal' e começou a florescer o discurso de flexibilização, de redução de custos e de 'agilidade' na gestão de mão de obra. O direito do trabalho passa a ser visto como algo que cria mais problemas do que os que consegue resolver, em particular no campo econômico e no plano da gestão empresarial".

Esse movimento se intensifica, leciona Amado, sobretudo a partir dos anos 1980, "com a subida ao poder de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e de Margaret Thatcher, no Reino Unido, líderes de uma contrarrevolução conservadora que definitivamente põe 'no banco dos réus' o direito do trabalho, que passa a ser visto como algo que provoca ineficiência no mercado e acaba por punir aqueles a quem deveria proteger. O foco do debate migra da relação entre o capital e o trabalho para o embate 'insiders' versus 'outsiders', pondo, de um lado, os trabalhadores empregados, e, do outro, os desempregados ou com vínculo de emprego precário, como os temporários e os terceirizados". Assim, no entendimento de seus críticos, diz o professor, o direito do trabalho contribui para segmentar o mercado de trabalho, produzindo um número cada vez maior de "outsiders", e é nesse diagnóstico que o discurso da flexibilização se fundamenta.

Já no século XXI, a "terapia" aplicada a esse mal, explica o conferencista, passa a ser um direito trabalhista "flexível", que preconiza menos a ideia de equidade e mais a de eficiência. "É outra mudança de foco", detalha Amado. "O direito do trabalho já não mais é visto como instrumento de proteção do trabalhador, mas sim da empresa, do mercado", diz ele. "É um mercado a mais, o mercado laboral, que precisa ser regulado como mercado. As leis do trabalho se convertem em 'leis do mercado laboral', despojadas da ideia de justiça social, pautando-se tão só na ideia de eficiência."

Cria-se, prossegue o professor, o conceito de "flexigurança", um neologismo que resume um quadro regulatório em que, paralelamente à flexibilização das relações de trabalho, são concedidos, como forma de compensação, alguns direitos adicionais ao trabalhador demitido, em forma de subsídios ou capacitação para futuros empregos. "Esse modelo, no entanto, acabou sofrendo um desgaste, por ter ficado associado a precarização e redução de direitos. Além disso, ele custa caro e, com a crise iniciada em 2008, ficou em segundo plano, limitado a países do norte da Europa, como Suécia e Dinamarca."

No sul do continente, o remédio foi outro, e ainda mais amargo. Em Portugal, leciona Amado, já em 2003 o novo Código do Trabalho instituiu um sistema cuja implantação no Brasil foi defendida na mesma época por correntes liberais. Estamos falando do princípio da prevalência do negociado sobre o legislado, modelo que, se aqui "não pegou", em Portugal já está na segunda década de vigência. "A mudança pôs a baixo a norma de que as convenções coletivas de trabalho só poderiam reforçar direitos", resume o jurista. "Uma das consequências foi a proliferação de modalidades atípicas de contrato de trabalho, como o contrato a prazo, 'driblando', assim, o princípio da continuidade do emprego, que vigorava até então."

Em 2009, na condição de um dos países mais afetados pela crise recém-deflagrada, Portugal novamente revisa seu Código do Trabalho, cedendo às exigências do Fundo Monetário Internacional e do Banco Central Europeu. O FMI e o BCE condicionaram a concessão de empréstimos - de que a combalida economia portuguesa necessitava desesperadamente – a contrapartidas que puseram os trabalhadores do país ainda mais "contra as cordas". "Foram reduzidas as compensações a serem pagas aos demitidos", exemplifica Amado. Em lugar de um mês de salário para cada ano trabalhado na empresa em caso de dispensa coletiva, passou-se para 12 dias de salário para cada ano. Além disso, houve a redução do período de férias e a supressão de quatro feriados, incluindo o da Implantação da República (5 de outubro), que celebra a destituição da monarquia, ocorrida em 1910, e o da Restauração da Independência (1º de dezembro), em comemoração da reconquista da autonomia portuguesa em 1640, quando teve fim um período de seis décadas de atrelamento à Coroa espanhola. O adicional sobre as horas extras caiu de 50% para 25%, e de 100% para 50%, em caso de trabalho noturno, e ainda foi instituído o sistema de banco de horas.

Nos anos seguintes, o agravamento da deterioração de algumas economias da Europa, particularmente em países do sul europeu, como Espanha, Itália e Grécia, além do próprio Portugal, provocaria o que Amado chama de "concorrência entre Estados", uma "competição entre os ordenamentos jurídicos", como conceitua o professor, na busca de reduzir custos para atrair investimentos.

Contraditoriamente, porém, lado a lado com a desvalorização dos direitos tipicamente trabalhistas, ganham força "direitos inespecíficos, como, por exemplo, os direitos da personalidade, dispostos nos artigos 14 a 22 do Código do Trabalho português de 2009", esclarece o conferencista. "Fortalece-se a proteção contra o assédio moral e o sexual, expressamente proibidos pelo artigo 29 do Código", detalha ele. "É uma evolução, sem dúvida, mas que não deixa de conter um caráter contraditório, à medida que essa valorização de direitos inespecíficos, ligados a conceitos como personalidade e cidadania, vem acompanhada da depreciação dos direitos específicos, essencialmente laborais", sublinha.

Cético quanto à possibilidade de o direito do trabalho retomar seu melhor período, vivido nas três décadas que se seguiram à II Guerra Mundial - "os anos de ouro não vão voltar" -, Amado preconiza o resgate ao menos em parte do espírito consubstanciado na Declaração de Filadélfia. "O direito do trabalho é filho do sistema capitalista. Como é comum aos jovens, foi um 'filho rebelde' em seus primeiros tempos, mas essa rebeldia está desaparecendo, e ele já não se revolta tanto com a figura paterna, cujas fraquezas e defeitos o direito do trabalho, a exemplo do que acontece com o ser humano, começa a compreender melhor, agora que está envelhecendo e se tornando mais pragmático, buscando se adaptar aos novos tempos. Mas, se já não é o caso de ser um 'filho rebelde', também não é preciso se converter num 'filho desnaturado' do capitalismo. O direito do trabalho está envelhecendo mal, abandonando os sonhos da juventude. Não se trata de voltar atrás, mas, pelo menos, de envelhecer bem. Por que não?", arrematou o professor.

Em acréscimo à fala do jurista, o ministro Alexandre Belmonte observou que, no Brasil, embora dispostos no artigo 5º da Constituição Federal, os chamados direitos inespecíficos estão em fase de consolidação. "Ainda estamos numa época de afirmação desses valores, mas com o tempo nós vamos conseguir solidificá-los, como quer a Carta Magna. Por enquanto, ainda há no País quem os considere 'uma frescura'", criticou o ministro.

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