Seminário em Sorocaba discute boas práticas de combate do trabalho infantil
Por Ana Claudia de Siqueira
Dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD/ IBGE) indicam que em 2014 existiam 3,3 milhões de crianças e adolescentes em situação irregular de trabalho no País. Deste número, 2,7 milhões eram adolescentes entre 14 e 17 anos. Ou seja, 84% dos jovens estavam trabalhando e, de acordo com o estudo, 60% deles exerciam atividades ilegais e perigosas, principalmente em indústrias e na agricultura. Estes e outros temas foram abordados no Seminário Combate ao Trabalho infantil: Boas Práticas, promovido pelo Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT-15) e pela Escola Judicial da Corte nesta sexta-feira, dia 6 de maio, na Faculdade de Direito de Sorocaba (FADI). Cerca de 400 pessoas participaram do evento que teve inscrições gratuitas e caráter beneficente, com o estímulo à doação de um quilo de alimento não perecível para a Associação Obra do Berço de Sorocaba.
Compuseram a mesa de abertura, a ministra do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Maria de Assis Calsing (vice-coordenadora da Comissão de Erradicação do trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem e vice-presidente do Programa Nacional de Combate ao Trabalho Infantil da Justiça do Trabalho); o presidente do TRT 15ª e do Colégio de Presidentes e Corregedores dos Tribunais Regionais do Trabalho (Coleprecor), Lorival Ferreira dos Santos; o prefeito municipal de Sorocaba, Antonio Carlos Pannunzio; o presidente da Câmara Municipal de Sorocaba, José Francisco Martinez; o desembargador Francisco Alberto da Motta Peixoto Giordani (diretor da Ejud 15ª); a deputada estadual Maria Lúcia Amary (1ª vice-presidente da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo); o professor doutor José de Mello Junqueira (diretor e coordenador pedagógico da FADI); o desembargador João Batista Martins César (presidente do Comitê de Erradicação do Trabalho Infantil do TRT 15ª); o presidente da Fundação Educacional Sorocabana, Antonio Carlos Delgado Lopes; o prefeito municipal de Votorantim, Erinaldo Alves da Silva; o prefeito municipal de Tapiraí, Araldo Todesco; o presidente da Câmara Municipal de Votorantim, Eric Romero Martins de Oliveira; o juiz presidente da Amatra XV, Luís Rodrigo Fernandes Braga; o juiz auxiliar da presidência do TRT 15ª e diretor do Fórum trabalhista de Sorocaba Firmino Alves Lima; o juiz diretor do Fórum Estadual de Sorocaba, Hugo Leandro Maranzano; a promotora da Infância e Juventude de Sorocaba, Ana Alice Mascarenhas Marques; o procurador do MPT 15ª, Ronaldo José de Lira (representando o procurador-chefe Eduardo Luís Amgarten); o delegado de Polícia da Infância e Juventude de Sorocaba José Augusto Pupim, o presidente da Subseção da OAB de Sorocaba, Márcio Rogério Dias; e o presidente do Centro Acadêmico da FADI, Felipe José Vieira Barbosa.
Abrindo oficialmente o seminário, o presidente do TRT, desembargador Lorival agradeceu à FADI pelo espaço cedido para a realização do evento e mencionou o trabalho de conscientização que vem sendo desenvolvido em rede, com destaque para a audiência pública ocorrida no dia anterior, em sua sede em Campinas, sobre a Lei da Aprendizagem, reunindo MPT, Ministério do Trabalho, empresas e demais representantes da sociedade civil. "Nós queremos que a criança passe a estudar, e aqueles com idade que a Constituição permite, tenham emprego e estejam numa escola de aprendizagem. É nessa perspectiva que declaramos aberto este seminário de hoje".
Ao fazerem uso da palavra, o prefeito Pannunzio e o presidente da Câmara de Sorocaba, José Francisco Martinez, ressaltaram a importância de se trazer a temática do combate ao trabalho infantil para o município, destacando as iniciativas da Justiça do Trabalho. O evento também foi considerado da maior relevância pelo desembargador Giordani, que sublinhou os percalços da sociedade em que vivemos, onde "milhões de crianças carregam o peso do trabalho nas costas". "Temos que evitar sermos taxados de sociedade da desesperança". Após os discursos, o professor doutor da FADI, José de Mello Junqueira, fez uma homenagem à ministra Maria Calsing, com a entrega da Medalha Darcy de Arruda Miranda.
Aprendizagem: caminho legal
Após a exibição do Coral do NURAP - Núcleo de Aprendizagem Profissional e Assistência Social, de São Paulo, o evento prosseguiu com a conferência – "Trabalho Infantil: você não vê, mas existe" –, a cargo da ministra Maria de Assis Calsing, que fez uma contextualização histórica sobre o tema, apresentando as diretrizes do programa do TST, a lista das piores formas de trabalho infantil (TIP) e a lei da aprendizagem nº 10.097/2000 como caminho legal para a erradicação. "A lei da aprendizagem é uma política pública que cria oportunidades tanto para o aprendiz quanto para as empresas, pois oferece preparação ao iniciante para desempenhar atividades profissionais e de ter capacidade de discernimento para lidar com diferentes situações no mundo do trabalho. Ao mesmo tempo, permite às empresas formarem mão de obra qualificada, algo cada vez mais necessário em um cenário permanente evolução tecnológica", assinalou.
Depois de uma curva descendente, com 7,7 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos ocupados no Brasil em 1992 para 3,2 milhões em 2013, uma redução de 59%, houve aumento da incidência de trabalho infantil em 2014, de acordo com dados do IBGE/ PNAD apresentados pela ministra. Apenas 366 mil adolescentes de 14 a 17 anos mantinham contrato de aprendizagem. A lei prevê que as empresas de médio e grande porte contratem um número de aprendizes equivalente a um mínimo de 5% e um máximo de 15% dos trabalhadores existentes, cujas funções demandam formação profissional.
De acordo com a legislação, a contratação tem um prazo determinado de, no máximo, dois anos. Para participar, os adolescentes e jovens entre 14 e 24 anos incompletos precisam ter concluído ou estar cursando o ensino fundamental ou médio. "A Justiça do Trabalho reconhece que o contrato de aprendizagem é uma solução muito eficaz para a erradicação do trabalho infantil e para a inserção social e profissional de jovens e adolescentes no mercado de trabalho".
Após a exibição de filmete da campanha institucional sobre a Lei da Aprendizagem, lançada pelo programa de combate ao trabalho infantil, Maria Calsing concluiu que o País dispõe de instrumentos suficientes, tanto na legislação como nas normas do direito internacional, para enfrentar essa grave chaga social, a partir da cultura da não autorização para o trabalho antes dos 14 anos, da rigorosa análise das situações de aprendizagem e da denúncia de toda e qualquer suspeita de exploração do trabalho infantil.
Na sequência, os participantes do seminário puderam conhecer a prática da CPFL Energia, que aderiu ao programa regional de combate ao trabalho infantil do TRT15. O diretor jurídico da empresa, Fábio Medeiros, apresentou uma série de ações adotadas pela CPFL para sensibilizar as pessoas de sua área de influência e relacionamento sobre o tema, o que inclui mensagens nas contas enviadas aos clientes e divulgação de material educativo em seus canais de comunicação, além da própria contratação de jovens aprendizes, atendendo à Lei da Aprendizagem.
Boas Práticas
No painel "Boas práticas no combate ao trabalho infantil no âmbito da Justiça do Trabalho", a defensora pública do Estado da Regional Ribeirão Preto – Unidade Franca, Mariana Carvalho Nogueira, abordou as iniciativas adotadas no município de Franca, conhecido produtor de calçados, que conta com um dos índices mais elevados de casos de trabalho infantil do estado. Com apresentação do desembargador do TRT15, João Batista Martins César, o painel contou com a participação, na mesa de trabalhos, do juiz José Roberto Dantas Oliva (diretor do Fórum Trabalhista de Presidente Prudente e coordenador do Juizado Especial da Infância e Adolescência/ JEIA da Circunscrição local) e do presidente do Centro Acadêmico da FADI, Felipe José Vieira Barbosa.
A atuação em rede, por intermédio do Fórum Municipal de Erradicação do Trabalho Infantil, tem contribuído para mudar a realidade francana, buscando romper com o ciclo de pobreza existente, que se sustenta no trabalho precoce, na evasão escolar, na falta de acesso à educação e à profissionalização, levando ao desemprego e ao subemprego. Compõem o fórum as instituições: Justiça do Trabalho (via Juizado Especial da Infância e Adolescência/ JEIA de Franca), MPT, Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Ministério do Trabalho e Emprego, OAB-Franca, SENAC, SENAI, CIEE, ESAC, Instituto Pro-Criança, Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, Acif, Sindifranca e Assescofran.
A rede, voltada para proteção integral da criança e do adolescente, desenvolve um trabalho de conscientização com as famílias, realiza audiências públicas com notificação de empresários, visando preenchimento das vagas de aprendizagem ociosas e promove o encaminhamento dos adolescentes para os cursos profissionalizantes. Mariana destacou o papel exercido pela Defensoria Pública, por cada uma das instituições, enfatizando ainda a atuação da juíza Eliana dos Santos Alves Nogueira, diretora do Fórum Trabalhista de Franca, titular da 2º VT e coordenadora do JEIA local e da procuradora do MPT em Ribeirão Preto, Regina Duarte da Silva. "Tem vaga de aprendizagem no município e jovens para preenchê-las, faltava a articulação em rede, que é o que estamos fazendo. Como resultado prático, a rede de proteção está promovendo a correta inserção do jovem no mercado de trabalho, por meio da aprendizagem, possibilitando a profissionalização", afirmou. Mariana apresentou a prática no Congresso Nacional da Defensoria Pública realizado em Curitiba. Dentre 27 inscritos, o projeto de Franca ficou em terceiro lugar.
2º Painel: O desenvolvimento da criança e o trabalho infantil
Na abertura dos trabalhos da tarde, foi realizada a solenidade de instalação do Centro Integrado de Conciliação de 1º Grau da Circunscrição de Sorocaba (leia matéria). Na sequência, o psicólogo clínico Ivan Roberto Capelatto discorreu sobre "O Desenvolvimento da Criança e o Trabalho Infantil". Apresentado pelo vice-presidente administrativo do TRT da 15ª, desembargador Henrique Damiano, Capellato iniciou sua fala citando o filósofo Imannuel Kant, que em 1752, escreveu: "os homens podem chegar a um estado consciente de esclarecimento – lucidez – e desenvolverem um sentimento de amor, compaixão e responsabilidade pelos outros". Por meio de slides, Capellato explicou resumidamente a neurobiologia da emoção e a importância da amídala cerebral - responsável pelas emoções, educação e aprendizagem.
O psicólogo falou sobre o sentimento de angústia, o conceito de afeto, raiva e o medo de perder. Segundo Capellato, o córtex orbitofrontal, responsável pelas tomadas de decisão, juízo crítico e por sermos "lúcidos" e cumpridores das leis, só se forma entre os 23 e 25 anos de idade. A ausência de um ambiente saudável e de parceria familiar gera a falta de autoestima, e o trabalho escravo infantil se torna mais uma opção na busca pelo "sentimento de pertinência" - pertencer à escola, à aula, ou a algum grupo como aliar-se ao tráfico, às torcidas organizadas compulsivas, entre outros. "Hoje vivemos um bônus demográfico de adolescentes e crianças que, por certo, muitas não têm ou não terão os cuidados necessários", evidenciou.
De acordo com Capellato, as condições socioeconômicas precárias (pobreza e falta da pertinência à escola) irão determinar uma necessidade de autossuficiência, de autoestima e de se sentir pertencendo a "algo" ou "alguém" que faça uma espécie de "nutrição" psíquica daquilo que falta: os limites, que irão ser substituídos pelo comando, às vezes cruel, de patrões, de traficantes, de cafetões e cafetinas; o afeto, que vem do pouco contato físico (muitas vezes agressivo) e da pertinência, que é se saber "parte de um grupo". Capellato finalizou sua palestra reforçando que o desejo fundamental do ser humano consiste exatamente no desejo de ser desejado e cuidado. "Sentir-se desejado produz autoestima. Sentir-se cuidado produz autocrítica. Ter autoestima e autocrítica produz autonomia, que significa saber quais são seus próprios limites e saber isso, significa poder se cuidar".
3º Painel: Trabalho doméstico infantil e acidentes do trabalho
Coordenado pelo juiz Firmino Alves Lima, o terceiro painel tratou do trabalho doméstico infantil e acidentes do trabalho, com explanação do juiz titular da 4ª VT de Ribeirão Preto, Tarcio José Vidotti, coordenador do JEIA da circunscrição sediada naquele município e do procurador regional do Trabalho do MPT de Campinas, Ronaldo José de Lira.
Vidotti fez uma reflexão sobre a própria expressão "trabalho" infantil, que entende ser totalmente equivocada. Para o magistrado, o conceito de "trabalho" tem significado positivo na sociedade e que o melhor termo para definição é "exploração" de crianças e adolescentes. De acordo com Vidotti, lamentavelmente a exploração do trabalho infantil teve início nos idos do século XVI com as naus portuguesas. "O primeiro grande movimento foi a internação dos chamados ‘miúdos', os ‘grumetes', aprendizes de marinheiros nos navios e as órfãs ‘Del Rei' que eram caçadas e obrigadas a casar com os nobres, para suprir a falta de mulheres". Eram péssimas as condições de alimentação e higiene, segundo os próprios relatos da literatura.
A "viagem histórica trágica" traçada pelo magistrado passou pelas crianças negras escravas trazidas da África, que iniciavam o trabalho na "casa grande" como aprendizes aos 4 anos e aos 8 já exerciam as tarefas domésticas de forma efetiva; pela guerra do Paraguai, na qual o Brasil enviou cerca de 600 crianças para a luta; pelas fábricas do Brás em São Paulo no século XIX, onde crianças se submetiam a jornadas exaustivas; e mais recentemente, pela atitude de um casal que publicou anúncio no jornal para ‘adotar uma menina' de 12 a 18 anos a fim de cuidar de um bebê de um ano.
Vidotti defendeu uma mudança do marco legal da fiscalização. Para o magistrado, o trabalho infantil doméstico está protegido sob o manto do artigo 5, inciso XI, da Constituição, que trata da inviolabilidade do domicílio, e da lei complementar nº 150/ artigo 11a, a qual determina que a verificação por parte dos auditores fiscais depende de agendamento e entendimento prévios com o empregador. "É preciso criar ferramentas jurídicas que permitam uma fiscalização mais ágil e com elemento surpresa", concluiu.
Ronaldo Lira conceituou o trabalhador doméstico, sendo "aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não-lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial". Se exercido por criança ou adolescente, configura-se na Lista TIP como uma das piores formas de trabalho infantil. Lira pontuou também as dez razões contra o trabalho infantil, sobretudo com relação ao corpo físico ainda em formação da criança e os malefícios à saúde, provocados pela atividade precoce. O conteúdo integra a cartilha "Saiba Tudo sobre o Trabalho Infantil", do Ministério do Trabalho, realizada em parceria com o cartunista Ziraldo.
O procurador do MPT abordou ainda a incidência de acidentes de trabalho no Brasil, envolvendo crianças e adolescentes, narrando o caso emblemático do menino Gedeão, de 9 anos, que trabalhava na montagem de caixas de tomates com pregos e perdeu um olho. Julgada em 2001, na VT de Itapeva, a ação trabalhista ajuizada pelo MPT, permitiu que o menino obtivesse carteira de trabalho para fins previdenciários. Lira considera o processo um marco na história, pois uniu as instituições MPT e Justiça do Trabalho da 15ª Região contra o trabalho infantil, sendo um embrião para o engajamento existente hoje. "Como diz a lei de proteção integral, cabe à sociedade, ao estado, ao Ministério Público, aos conselhos tutelares e a todos nós, nos unirmos contra essa exploração perversa que é o trabalho infantil", finalizou.
Leitura e aprovação da Carta de Sorocaba
O diretor da Ejud do TRT15, desembargador Francisco Giordani promoveu, ao final do seminário, a leitura e aprovação da Carta de Sorocaba. Dentre os 12 apontamentos, o documento destaca que "a aprendizagem é porta válida e protegida para a profissionalização e caminho seguro a ser trilhado para o primeiro emprego".
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