A natureza dos contratos existenciais e as semelhanças entre o direito do trabalho e o direito do consumidor foram o tema do terceiro painel do Congresso do TRT
O professor Raul Saco Barrios, do Departamento Acadêmico de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Peru, abriu a programação do segundo dia do 18º Congresso de Direito do Trabalho e Processual do TRT-15, nesta sexta-feira (8/6), com uma apresentação sobre o tema "Contratos existenciais/contratos de lucro: direito do trabalho e direito do consumidor, semelhanças?". Advogado trabalhista e árbitro em negociações coletivas nos setores público e privado em seu país, com mestrado em relações laborais, o palestrante foi apresentado pelo desembargador Francisco Alberto da Motta Peixoto Giordani, da 6ª Câmara da Corte.
Falando um elegante português, o jurista peruano recorreu a vários autores latino-americanos para afirmar a dicotomia entre os contratos existenciais e os contratos de lucro. "Essa distinção existe devido à evidente desigualdade entre as partes nos dois tipos de contrato. Os contratos existenciais têm como uma das partes pessoas naturais ou pessoas jurídicas sem fins lucrativos e referem-se à prestação de bens essenciais à pessoa, como saúde, moradia, emprego, segurança. Por envolverem direitos sociais, exigem a participação do juiz na avaliação do seu conteúdo. Já os contratos de lucro, firmados entre empresas e profissionais no âmbito de atividades empresariais, dispensam, em função de sua natureza, a interferência judicial", lembrou Barrios, reforçando a validade de tal distinção.
Para o professor, os contratos de trabalho, assim como aqueles firmados pelos consumidores, seriam exemplos típicos de contrato existencial, de conteúdo tutelado pelo Estado. "O direito do trabalho, responsável por regular a relação entre empregador e empregado numa situação de subordinação, o direito do consumidor, que disciplina o habitante da sociedade de consumo, assim como o direito previdenciário, o direito ambiental e o direito da criança e do adolescente, entre outros, constituem o que chamamos de Direito Social, um macrodireito surgido no início do século XX como um gênero independente do direito privado e do direito público, em defesa daqueles com menos condições materiais e oportunidades."
Barrios comentou que, diferentemente do direito do trabalho, que já surgiu como um direito social, o direito do consumidor no Brasil inicialmente fez parte do direito comercial. Já no Peru, lecionou o professor, "desde o início se afirmou o caráter social do direito do consumidor e sua incompatibilidade com esquemas privatistas".
O palestrante deteve-se ainda nos principais pontos de contato entre os dois direitos, focando, inicialmente, em sua origem e evolução histórica. O direito do trabalho, explicou, teve origem na revolução industrial do século 18, como "uma resposta à impossibilidade de aplicar irrestritamente às relações contratuais trabalhistas as regras de autonomia da vontade vigentes no contrato civil. Veio nivelar as evidentes desigualdades entre as partes envolvidas em um contrato de trabalho e proteger os direitos fundamentais do trabalhador – ao próprio trabalho, à segurança e saúde no trabalho, à liberdade de expressão, à contratação coletiva, à sindicalização, à promoção de greves. O objetivo era regular a atividade laboral de modo a assegurar a dignidade do ser humano." Já o direito do consumidor, lecionou Barrios, teria surgido um pouco depois, com o crescimento demográfico das cidades, a produção em série e o nascimento da sociedade de consumo, e se desenvolvido sobretudo após a 2ª Guerra Mundial, com a revolução das tecnologias de telecomunicação e informação. "O século 20 foi o século do consumo e de afirmação do direito do consumidor, que tem como principais princípios norteadores o direito à informação, à segurança e à participação nas decisões."
Outro ponto de aproximação entre os dois direitos destacado por Barrios são os princípios que os orientam. Segundo o palestrante, o direito do consumidor se inspira em vários princípios do direito trabalhista. "O título preliminar do Código de Proteção e Defesa do Consumidor do Peru [aprovado pela Lei nº 29.571, publicada em 2 de setembro de 2010] faz referência ao princípio pró-consumidor, o correspondente ao princípio do "in dubio pro misero" do direito trabalhista, ao princípio da assimetria entre provedores e consumidores e ao princípio da proteção mínima, considerados fundamentais para reequilibrar relações jurídicas assimétricas. O Código também estabelece a irrenunciabilidade do direito à restituição, semelhante ao princípio da irrenunciabilidade de direitos do direito do trabalho, além de assegurar o princípio da primazia do que acontece no mundo dos fatos, bastante semelhante ao princípio da realidade do direito do trabalho." O professor lembrou ainda que a legislação consumerista peruana acolhe os princípios da não discriminação e da boa-fé, da importância da confiança e lealdade entre as partes, "princípios que estão na base de todo direito (teoria geral dos contratos) mas que têm singular presença no direito trabalhista".
O palestrante ressaltou, por fim, o sentido totalizador das noções de trabalhador e de consumidor – "todos somos trabalhadores e consumidores" – e o grande desafio que é garantir a dignidade de todos os trabalhadores e consumidores. "O reforço dos princípios do direito do trabalho e do direito do consumidor torna-se ainda mais essencial na atual conjuntura de flexibilização e desregulação da proteção à dignidade da pessoa humana", advertiu.
O contrato como ponto de encontro de direitos fundamentais
Na mesma linha do professor Barrios, o desembargador Francisco Alberto da Motta Peixoto Giordani destacou as peculiaridades do contato existencial e a importância de reafirmar as suas distinções em relação ao contrato de lucro. "Temos de humanizar o direito. Pensar na pessoa concreta que firma o contrato e não na pessoa abstrata. Quais são as partes contratantes? Em que situação elas se encontram? Qual a justiça daquele contato? É isso que temos de ver. No contrato existencial o interesse da pessoa se mistura com ela, com o interesse de sua dignidade, cuja proteção é garantida no artigo 1º da Constituição Federal de 1988. Já quando o negócio é patrimonial não há pessoa envolvida. Por isso nos contratos de lucro as partes têm maior autonomia. Nos contratos existenciais a autonomia é menor, há mais limitações por parte do Estado, para preservar a parte mais fraca, manter sua existência e dignidade."
Referindo-se à reforma trabalhista implementada com a aprovação da Lei 13.467/2017, Giordani questionou: "Como vamos conciliar um contrato existencial com dispositivos da reforma que propõem a prevalência do negociado sobre o legislado?". Na avaliação do magistrado, o Legislativo brasileiro ignorou o estado da arte da teoria contratual e foi na contramão da História. "Justo num momento de crise, em que o trabalhador mais precisa de proteção, o legislador decidiu afastar o Estado da regulação do contrato trabalhista!"
Citando o jurista italiano Enzo Roppo, autor do livro "O contrato", Giordani ressaltou a importância do contrato na sociedade atual, "como instrumento de circulação e distribuição de riquezas, mas também como ponto de encontro de direitos fundamentais". Nesse sentido, conclamou todos a "construir barreiras para obstar essa degola da proteção ao trabalhador, fundada na desconsideração da natureza existencial do contrato trabalhista". Na avaliação do desembargador, que foi diretor da Escola Judicial do TRT-15 no biênio 2014-2016, "precisamos ver o direito de acordo com as nossas necessidades, com a necessidade de nossos povos, e não com a necessidade de nossos colonizadores. Procurar o direito nosso, latino-americano, que respeite o modo de bem viver de nossa cultura".
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