1ª Câmara reconhece vínculo de motorista obrigado a comprar caminhão para trabalhar e condena empresa por dano moral e existencial
A 1ª Câmara do TRT-15 reconheceu o vínculo empregatício de um motorista que foi obrigado a firmar com as reclamadas, uma cooperativa e uma empresa de transporte rodoviário, a compra de um caminhão para trabalhar. Além de manter a decisão do Juízo da 2ª Vara do Trabalho de Paulínia, que reconheceu a nulidade do contrato de arrendamento celebrado entre as partes, o colegiado também condenou solidariamente as empresas, após a apuração de confusão patrimonial entre o presidente da cooperativa de transportes rodoviários e a transportadora (dirigida pelo mesmo presidente da cooperativa), por atuarem “em fraude à legislação trabalhista, nos termos do art. 9º da CLT e art. 942 do Código Civil”. As empresas foram condenadas também, entre outros, a pagar R$ 5 mil de danos morais ao motorista, além de R$ 1.500 por dano existencial diante da longa e estafante jornada de trabalho a que esteve submetido, sem direito à desconexão.
A Cooperativa argumentou em sua defesa que o motorista, um “associado, com autonomia e independência na prestação dos serviços, os quais eram apenas administrados pela cooperativa”, celebrou o contrato de arrendamento do veículo “por sua livre e espontânea vontade e que outros prestadores de serviço celebraram a mesma modalidade contratual e conseguiram adquirir o caminhão, o que afastaria a hipótese de fraude”. Já a transportadora negou a prestação de serviços do motorista em favor da empresa "anteriormente ao período registrado, o que deve ser considerado para ausência de reconhecimento de vínculo empregatício no período de 25/1/2016 a 16/3/2016".
De acordo com os autos, o motorista ingressou com a ação trabalhista alegando que em janeiro de 2016 teria sido induzido pela primeira reclamada (transportadora) a realizar um contrato particular de arrendamento de veículo, no valor de R$ 164 mil, pago por meio de uma entrada no valor de R$ 20 mil e o restante em 33 parcelas mensais de R$ 4.463,33. Segundo conta, ele “custeou a entrada com recursos próprios”, e a empresa “pagava-lhe apenas os valores dos fretes dos quais eram descontadas as parcelas do arrendamento e todos os gastos relativos ao veículo”, que “mesmo após a formalização do seu contrato de trabalho, passou a receber salário mensal, com diversos descontos, de modo que era ele mesmo quem pagava o seu salário e demais benefícios” e que “todo o fechamento mensal era feito pela segunda reclamada (cooperativa)”, presidida pelo gerente da transportadora.
Nos autos, o motorista afirma que “em razão dos descontos realizados mensalmente nunca recebeu valores a título de frete”, e que na data de sua demissão, devolveu o caminhão à transportadora, “oportunidade em que esta teria prometido pagar-lhe as verbas rescisórias, no valor de R$ 7.991,40, acrescidas de R$ 10.000,00 em dinheiro, em parcelas de R$ 2 mil, das quais recebeu “apenas uma parcela”. E por tudo isso alega a nulidade do contrato de arrendamento, sob o argumento de que o referido instrumento foi firmado com o intuito de “burlar a legislação trabalhista, com a transferência dos riscos do negócio ao empregado”, e que, ainda sobre a dívida relativa ao caminhão, financiada pela transportadora, “eram aplicados juros de 1,5% ao mês, além dos descontos de todas as despesas com o caminhão, num aumento geométrico do saldo devedor”.
Para o relator do acórdão, o desembargador José Carlos Abile, logo de início, “evidencia-se, no mínimo curioso” o fato de o presidente da cooperativa ser também o administrador da logística da transportadora, e baseado nos documentos dos autos, afirmou que essa mesma pessoa “ao contrário do que querem fazer crer as reclamadas está longe de ser um terceiro sem qualquer relevância jurídica”, e que “sua relação de confusão patrimonial e funcional revela a verdadeira relação jurídica entre as reclamadas, que se uniram para lesar direitos trabalhistas, em inequívoca fraude, nos termos do art. 9º da CLT”.
O acórdão ressaltou que o contrato denominado de “arrendamento de veículo” firmado entre as partes é, na realidade, “um contrato de leasing com promessa de venda ao final, e que esse contrato “não deixa dúvida sobre a tentativa de transferir os riscos do negócio ao trabalhador, que prestava serviços com exclusividade para a primeira reclamada”. Não bastasse, “a precarização chegava ao seu limite quando os valores relativos às despesas do vínculo de emprego – cesta básica, vale alimentação e despesas com o veículo – eram debitados da receita do caminhão, fazendo com que o trabalhador estivesse sempre com uma dívida crescente”, reafirmando a analogia feita na sentença de primeiro grau de que o contrato do trabalhador assemelha-se "àqueles contratos celebrados entre trabalhadores rurais e fazendeiros, em que o valor devido ao armazém é sempre superior àquele que o empregado teria direito em receber (trabalho escravo contemporâneo praticado no meio rural)”, e que o fato de “o reclamante ter mantido vínculo de emprego anterior com a primeira reclamada apenas reforça a tese da fraude operada contra os direitos do trabalhador, que passou a trabalhar para pagar suas dívidas junto às reclamadas”, concluiu o colegiado.
O acórdão confirmou, assim, a sentença que declarou a nulidade do contrato de arrendamento de veículo firmado com a transportadora, e reconheceu a existência de vínculo empregatício entre ela o autor e desde 25/1/2016, além de deferir os valores por ele quitados a título de reforma do veículo (conforme boletos encartados), transferindo para a liquidação a apuração dos valores devidos.
Quanto à indenização por dano moral decorrente da fraude do contrato de arrendamento, a decisão colegiada afirmou que “há comprovação de prejuízo moral advindo diretamente da inscrição do trabalhador no SPC/Serasa, não havendo dúvida de que a conduta ilícita das reclamadas causou grave constrangimento ao trabalhador, já que diante dela, não pôde o reclamante arcar com todos os seus compromissos financeiros”, o que confirma, segundo o colegiado, a “responsabilidade subjetiva dos réus”. Já com relação ao valor de R$ 5 mil, a Câmara entendeu “razoável, levando-se em consideração o dano extrapatrimonial sofrido, o tempo de prestação de serviços e bem como as condições da empregadora, valendo lembrar que os danos materiais já foram devidamente analisados”.
Ao contrário do Juízo de primeira instância que julgou improcedente o pedido do trabalhador quanto ao “dano existencial” diante da longa e estafante jornada de trabalho a que esteve submetido, o colegiado entendeu que “não há como negar que a jornada de trabalho praticada pelo autor, das 5h às 22h, era abusiva, pois desrespeitava constantemente os limites constitucionais, evidenciando os prejuízos de ordem moral, diante da subtração do tempo que poderia ter dedicado ao lazer, nele compreendido o convívio familiar e social, bem como a atividade ou inatividade por escolha própria”.
O acórdão ressaltou ainda que “o lazer é direito social (e, portanto, fundamental) constitucionalmente assegurado a todos (art. 6º da CF)”, e que “a supressão do lazer, por força do trabalho, sobretudo prolongada no tempo, fatalmente afeta a saúde e o bem-estar físico e psíquico do indivíduo”, podendo ainda “desequilibrar seus relacionamentos afetivos e sua conduta social”, e se “para alguns, produz o dano existencial, outros veem simplesmente a violação ao ‘direito ao lazer’ ou ‘direito à desconexão com o trabalho’”. Nesse sentido, a Câmara reconheceu que se trata “de uma mesma problemática enfrentada sob mais de uma perspectiva, mas com uma conclusão convergente: o abuso do direito do empregador de exigir a prestação de serviços provoca a eliminação irrecuperável das horas de ‘não trabalho’ que ao empregado cabe gozar como bem entender”. Com respeito ao valor, considerando que o contrato teve duração de quase um ano, o colegiado arbitrou a indenização por dano existencial no valor de R$ 1.500,00, “por ser proporcional ao dano e compatível com os valores arbitrados por esta Câmara em casos semelhantes”. (Processo 0011635-53.2017.5.15.0126)
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