Justiça do Trabalho reforça alerta para o combate ao trabalho escravo contemporâneo
Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo rememora necessidade de esforços atuais para a defesa do trabalho decente e seguro para todas e todos
Quando a juíza auxiliar Adriana Melonio, em um gesto trivial, perguntou ao homem que servia seu copo com água, nas dependências do Tribunal Superior do Trabalho (TST), como ele se chamava, não poderia imaginar a história surpreendente que o nome ouvido em resposta, Maurício, guardava. "Eu adoro o meu nome, fui eu que escolhi”, acrescentou, na ocasião, o garçom de 45 anos. Maurício de Jesus Luz: nome autoproclamado e registrado em cartório, pela primeira vez, aos 18 anos de idade, após uma cidadania quase apagada pela violência dos vocativos “negão”, “macaco”, “capelão” e “nego da peste”. Maurício é um sobrevivente do trabalho escravo contemporâneo no Brasil, realidade que usurpou todos os seus direitos, inclusive o de ter um nome – garantia primária e imprescindível à dignidade humana.
#ParaTodosVerem: foto em preto e branco de mãos acorrentadas
#ParaTodosVerem: Mauricio, homem negro de cabelo raspado. Ele segura uma bandeja com xícaras e sorri para a foto.
Nascido em Tucuruí, no sul do Pará, Maurício foi abandonado aos oito meses de idade com a avó em uma fazenda na região. Lá, cresceu sob o horror da escravização: submetido a trabalho forçado, privação de liberdade, jornada exaustiva e condições degradantes, além de violência física e psicológica – ambas deixaram marcas. Chegou a trabalhar sob o mesmo regime de exploração em mais duas propriedades na região, mas só conseguiu fugir aos 18 anos, quando se envolveu com uma moça cuja família morava em Brasília. Para viajar à capital, porém, precisava de documentos, o que nunca teve. Com a ajuda velada de um casal de conhecidos, foi a um cartório e tornou-se Maurício de Jesus Luz – o primeiro nome em homenagem ao apresentador Maurício Fares, da Rádio Nacional da Amazônia, voz que embalou os anos mais difíceis de sua vida.
Há 17 anos no TST, hoje Maurício diz que o trabalho adquiriu outro significado. "Eu só vim me dar conta de que aquilo era sofrimento quando cheguei aqui no quinto andar”, conta, ao se referir ao pavimento onde está localizada a Presidência do Tribunal e auditórios onde são realizados eventos sobre o universo do trabalho. “Foi quando eu vi que aquilo que passei na minha infância até os meus 18, quase 19, anos não foi uma situação normal", reflete.
Escravidão contemporânea
A história de exploração e abusos sofridos por Maurício, felizmente, ficou para trás, mas, ainda hoje, segue sendo o dia a dia de muitos brasileiros e brasileiras. Neste domingo (28), quando se celebra o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, a Justiça do Trabalho faz um alerta para a urgência da erradicação desta realidade.
Segundo dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, entre 1995 e 2022, 57.772 pessoas foram resgatadas de condições de trabalho análogas à escravidão no país. Mais de 80% das vítimas resgatadas em 2022 se declararam pretas e pardas. A maioria são homens com idade entre 18 e 29 anos e ocupações no setor agropecuário, em trabalhos como criação de bovinos e cultivo de cana-de-açúcar.
Enfrentamento
Em 2023, a Justiça do Trabalho instituiu o Programa de Enfrentamento ao Trabalho Escravo, Tráfico de Pessoas e Proteção ao Trabalho do Migrante. A iniciativa busca desenvolver ações permanentes como capacitação de juízes e servidores para a escuta qualificada de pessoas escravizadas, traficadas e migrantes, produção de conhecimento amplo de fatos e normas relativos à escravidão contemporânea e, ainda, avaliação sobre a efetividade das decisões judiciais e sua aptidão para reverter, prospectivamente, o quadro social que induz à submissão ao trabalho escravo.
No Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, o Comitê de Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, coordenado pelo desembargador Luís Henrique Rafael, promove encontros e seminários, sobretudo com juízes do trabalho, buscando sensibilizar sobre a importância da identificação de situações de trabalho escravo ou tráfico de pessoas e discriminação, principalmente, buscar o detalhamento de provas na instrução do processo trabalhista para que estas possam subsidiar também investigações e punições por outras esferas do Judiciário. Compõem ainda o comitê os desembargadores Susana Graciela Santiso, Antonia Regina Tancini Pestana, Helio Grasselli e Adriene Sidnei de Moura David, além dos juízes Marcus Menezes Barberino Mendes, Renato Cesar Trevisani e Rodrigo Adelio Abrahão Linares.
Estado devedor
Ciente das repercussões históricas no perfil do trabalho escravo contemporâneo, o ministro Augusto César Leite de Carvalho, coordenador do programa, reforça que é responsabilidade do poder público a adoção de medidas que revertam a degradação humana promovida ou consentida ao longo da história. “O Estado brasileiro tornou-se devedor, desde maio de 1888, de políticas públicas que resgatem a dignidade de todos os seres humanos traficados durante a diáspora africana e abandonados à própria sorte, geração após geração”, afirma.
Ações
Entre janeiro de 2021 e dezembro de 2023, 363 processos que envolvem o trabalho em condições análogas à escravidão tramitaram no TRT-15. Somando-se aos outros 23 TRTs, são 2.786 processos registrados no país. No TST, no mesmo período, 28 processos sobre o tema tiveram tramitação.
Seminário em Bento Gonçalves
No mês que vem, o TST também realiza o seminário "Direito Fundamental ao Trabalho Decente: caminhos para a erradicação do trabalho escravo contemporâneo". O evento, aberto a magistrados, servidores e público externo, ocorrerá nos dias 26, 27 e 28 de fevereiro, em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. As inscrições já estão abertas e seguem até às 12h do dia 5 de fevereiro.
Com informações do TST
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