Trinta anos de história do complexo coureiro-calçadista de Franca é tema de palestra no TRT
Por Ademar Lopes Junior
A Escola Judicial e o Centro de Memória, Arquivo e Cultura (CMAC) do TRT da 15ª Região promoveram na última quinta-feira (13/5) a palestra “O mundo do trabalho no complexo coureiro-calçadista a partir dos processos trabalhistas (Franca-SP 1950-1980)”, ministrada pelo professor Vinícius de Rezende e orientada a magistrados, servidores e advogados. A Mesa de Honra do evento foi composta pelo diretor e pelo vice-diretor da Escola, respectivamente os desembargadores Lorival Ferreira dos Santos e Fernando da Silva Borges, e pelo vice-presidente judicial do Tribunal, desembargador Eduardo Benedito de Oliveira Zanella. Na plateia de 48 pessoas estavam presentes também o desembargador José Pitas, da 12ª Câmara, e o juiz auxiliar da Vice-Presidência Judicial, José Otávio de Souza Ferreira.
Em quase uma hora de apresentação, no Auditório 1 da Escola Judicial, o professor Rezende traçou um panorama histórico de três décadas do trabalho coureiro-calçadista de Franca, principal produtora nacional de calçados masculinos de couro. Nos anos 1980, a cidade chegou a empregar 30 mil trabalhadores formalmente registrados, o que promoveu um intenso movimento sindical no município e despertou a atenção de muitos pesquisadores.
O trabalho de pesquisa se baseou em 10.170 processos (apenas no setor coureiro-calçadista) arquivados no 1º e no 2º Cartório de Ofício e na Junta de Conciliação e Julgamento de Franca, num período que se estende de 1944 a 1988. Desses processos, 9.150 foram relacionados às indústrias de calçados e bancas. Os demais referem-se à indústria de artefatos de borracha, curtumes e insumos (fôrmas, acessórios, colas etc.). Cerca de 1.400 autos foram fotografados pelo pesquisador.
“Gratidão versus luta por direitos”
O foco das pesquisas foram as relações de trabalho: aprendizagem, sistema de remuneração e tecnologia. Segundo Rezende, aprendizes do ofício começavam cedo, entre 7 e 14 anos, sem registro ou remuneração. O palestrante explica que a gratidão predominava nas relações pessoais dos aprendizes com os empregadores, em sua maioria vizinhos e até familiares, donos de bancas e fabriquetas, que mantinham relações informais de trabalho, em aberto desrespeito às leis trabalhistas.
As pesquisas apontam dois lados bem distintos nas antigas relações de trabalho dos calçadistas em Franca: “gratidão versus luta por direitos”. Com base nessa dicotomia, Rezende destaca três pontos: o desrespeito às leis trabalhistas; os recursos à Justiça do Trabalho para garantir direitos suprimidos; e o discurso do trabalho infantil como elemento civilizador – o que justificava, inclusive, as precárias condições de trabalho das crianças e adolescentes.
De acordo com o pesquisador, apesar do avanço nas conquistas dos empregados e da importância da legislação trabalhista na consolidação de seus direitos, ainda hoje predomina no setor calçadista de Franca uma série de abusos contra o hipossuficiente. No que diz respeito ao trabalho infantil, a realidade do setor também está longe de ser diferente do quadro desenhado pelos processos trabalhistas estudados.
O palestrante frisou que o tipo de aprendizado oferecido, que preconizava o “aprender fazendo”, era voltado não apenas aos menores, mas também aos adultos sem capacitação, que perambulavam de seção em seção sem aprender nada. “Observa-se nos autos a burla do contrato de experiência, verdadeira exploração da ‘meia força’, ficando os trabalhadores sujeitos a suspensões quando a produção não atingia o desejado pelo patrão.” O discurso do empregador, estampado em alguns processos, fortalecia a cultura de que o ofício de sapateiro é eminentemente uma prática, e que o rodízio pelas seções e os ensinamentos recebidos seriam suficientes para que os reclamantes da época aprendessem a profissão que haviam escolhido.
Rezende revela que antigos empregadores, apoiados numa legislação pró-patrão, se aproveitavam dessa realidade para remunerar de forma diferenciada os trabalhadores. Segundo a pesquisa, menores aprendizes se mantinham como tais até completarem 18 anos, e ganhavam em média 50% do salário mínimo vigente. Já os aprendizes adultos, muitos migrados da zona rural, quando concluíam o aprendizado metódico, passavam a ganhar o salário mínimo integral em vigor. O pesquisador lembra que, “se por um lado regulamentou-se o aprendizado de menores, por outro se permitiu um pagamento injusto, que tomava por base a idade e não o trabalho realizado”.
O palestrante encerrou sua exposição lembrando a importância da preservação de processos trabalhistas para a pesquisa. Segundo ele, além de jornais e entrevistas, os autos trabalhistas são fonte de suma importância porque refletem a legitimidade da Justiça do Trabalho para dirimir conflitos. Admitindo já não ser possível se preservarem todos os processos, Rezende propõe guardar ao menos todos aqueles que tiverem recursos.
O diretor da Escola Judicial, desembargador Lorival Ferreira dos Santos, elogiou a palestra e disse ter feito um “passeio” pelos primórdios da Justiça Trabalhista. Ele lembrou que “antes eram os juízes de direito quem dirimiam os conflitos, mas que, mesmo assim, já se percebia uma sensibilidade em alguns em favor dos trabalhadores”.
No espaço reservado para debates, o magistrado questionou se os conflitos de hoje na Justiça do Trabalho continuam os mesmos de antigamente, considerando que o “jus variandi”, utilizado pelos empregadores nos anos 1960/1970 de modo absoluto, com o decorrer dos anos passou a sofrer limites impostos pela lei. Rezende disse que no campo por ele pesquisado muita coisa mudou, como vínculo empregatício, treinamento e dispositivos de segurança na produção, mas enfatizou que, em alguns aspectos, as relações de trabalho passam pelos mesmos problemas culturalmente construídos, tais como o uso de mão de obra infantil, a ocorrência de acidentes de trabalho, a transferência de etapas da produção para bancas, o que garante menos responsabilidade e maiores ganhos para as indústrias.
Esta é a quarta e penúltima exposição do ciclo de palestras sobre “História Social do Trabalho e da Justiça do Trabalho”, organizado pela Escola Judicial e o CMAC, em convênio com o TRT da 15ª e a Faculdade de História da Unicamp, com o objetivo de incentivar o debate entre profissionais do Direito do Trabalho sobre a história social, com base em autos judiciais trabalhistas. As três palestras anteriores, ministradas por professores da Unicamp, versaram sobre os temas “O passado é urgente: preservando a documentação da Justiça do Trabalho”; “Trabalhadores e Justiça do Trabalho nos anos 1920 e 1940” e “A luta pelo abono de Natal na Justiça do Trabalho”.
A última palestra, que fechará o ciclo, deve acontecer no próximo dia 10 de junho, com o tema “A Justiça do Trabalho no Brasil em perspectiva comparada”.
O palestrante
O professor Vinícius de Rezende, mestre em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” e doutorando em História Social pela Unicamp, é editor das revistas História Social e Mundos do Trabalho. Desde 2003, desenvolve pesquisas sobre o processo de industrialização e formação da classe trabalhadora em Franca, especialmente as categorias de sapateiros, curtumeiros e borracheiros.
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