Magistrados e outros especialistas divergem sobre competência penal para a Justiça do Trabalho
Por Ademar Lopes Junior
A Emenda Constitucional 45, de 2004, fixou definitivamente como sendo da Justiça do Trabalho a competência para julgar causas envolvendo danos morais e materiais decorrentes de acidente do trabalho. Até então, as acidentárias eram da competência da Justiça Comum. A EC 45 também ampliou a competência da Justiça do Trabalho para, dentre outros, julgar litígios envolvendo eleições sindicais. Esse “alargamento” de competência ajustou as tarefas da Justiça do Trabalho aos novos desafios contemporâneos, paralelamente a outros embates que surgem, como o enorme déficit de efetividade das leis trabalhistas ainda não cumpridas ou até mesmo as que são ignoradas.
Somente na 15ª Região, foram 46.557 ações recebidas da Justiça Comum (federal e estadual), no período de 2005 (julho a dezembro) a 2011 (janeiro a março), que migraram após a ampliação da competência da Justiça do Trabalho determinada pela EC 45/2004.
No rastro das discussões sobre a modernização da Justiça Trabalhista, especialmente com as novas balizas fixadas pela EC 45, posicionam-se “armados”, de ambos os lados, os que defendem e os que negam à Justiça do Trabalho mais uma cota de competência, a penal. Não é de todo uma novidade para o juiz do trabalho, que, de alguma forma, já exerce algumas atividades de caráter penal no desempenho de sua atuação jurisprudencial. Essas atividades são consideradas “periféricas” ou incidentais, uma vez que visam garantir, ao magistrado, a condução do processo e o seu cumprimento, até mesmo no que diz respeito à legislação criminal. Nesse aspecto, pode o juiz do trabalho, por exemplo, dar voz de prisão quando observar a ocorrência de falso testemunho cometido por testemunha, ou em caso de desacato à sua autoridade. Pode também comunicar aos órgãos competentes a ocorrência de delito nos autos do processo (artigo 40 do Código de Processo Penal).
Os favoráveis
Dentre os argumentos dos que defendem a competência criminal da Justiça do Trabalho, está o habeas corpus (para esses uma “ação de índole penal”), garantido pelo inciso IV do artigo 114 da Constituição Federal pela EC 45/2004. O ponto principal, no entanto, dos que defendem mais uma cota de competência (penal) para a Justiça do Trabalho é o fato de os delitos serem cometidos na área trabalhista. Eles acreditam que o seu julgamento pelo mesmo juiz que julga a ação trabalhista tornará o direito do trabalho mais efetivo. Em todos esses casos, o julgamento de crimes cometidos contra a organização da Justiça do Trabalho e contra a administração da Justiça do Trabalho fortaleceria a instituição, aumentando assim a sua respeitabilidade.
Para o presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 15ª Região (Amatra XV), Guilherme Guimarães Feliciano, defensor da competência penal na Justiça do Trabalho, há que se considerarem algumas questões, tanto estruturais quanto funcionais. Feliciano acredita que – apesar de a Justiça do Trabalho, numa perspectiva estrutural, não ter condições atuais de abarcar a competência penal, especialmente “nas Regiões mais assoberbadas, como na 1ª, na 2ª, na 3ª e na 15ª Região”, onde “a demanda processual típica já absorve sobremaneira o aparato disponível, tanto no aspecto pessoal como no aspecto material” –, do ponto de vista funcional, “a Justiça do Trabalho está mais do que preparada”. Feliciano considera “falacioso” o discurso “de que o juiz do Trabalho desconhece o Direito Penal’ e acrescenta que o magistrado do trabalho teve de assumir novas competências, “em matéria tributária (execução das contribuições sociais) e depois civil-indenizatória (responsabilidade patronal por acidentes e doenças do trabalho)”, que “não eram matérias do nosso métier, mas nem por isso passamos a prestar, nessas searas, jurisdição de pior qualidade”.
O presidente da Amatra XV também considerou que nem os princípios das duas Justiças, a Trabalhista e a Comum, são indissociáveis, “ao revés, esses princípios complementam-se”. Para ele, “há muito a jurisprudência trabalhista vem consagrando, nos tribunais regionais e inclusive no TST, o princípio da verdade real — originalmente esgrimido no processo penal — justamente no processo do trabalho, como consectário processual do princípio da primazia da realidade, que rege o direito material”. Já quanto ao princípio da “celeridade, por outro lado, não é um atributo exclusivo do processo do trabalho”, pois “os próprios criminalistas — ou ao menos uma parte significativa deles (porque, do ponto de vista da advocacia criminal de defesa, a demora tende a ser útil) — formam fileiras em torno de um processo penal mais célere e efetivo, que não prejudique, por um lado, a imperatividade da norma penal e, por outro, que não prolongue necessariamente o calvário do réu”. Feliciano concluiu que “os reflexos dessa ampliação, para os trabalhadores e para a sociedade em geral, seriam muitos. E positivos”. Coletivamente, “relações trabalhistas mais humanas e menos predatórias”; individualmente, “a sentença criminal condenatória serviria já de título executivo judicial para o trabalhador vitimado ou sua família (artigo 91, inciso I, do Código Penal)”.
Para Feliciano, que chegou a militar no Congresso Nacional pela extensão da competência da Justiça do Trabalho para lides penais, essa questão divide opiniões porque “há os que não querem porque temem a ‘mão pesada’ da Justiça do Trabalho; outros, porque temem uma inquisição judicial contra o empresariado”. Segundo ele, no entanto, “nada disso ocorreria”, pois “esse mesmo receio havia em relação à competência para indenizações por acidentes e doenças do trabalho, e, no entanto, não houve descalabros”. O presidente da Amatra XV afirmou que a Justiça do Trabalho está “construindo uma jurisprudência responsável e, nada obstante, garantista”. Para ele, isso se passaria também no âmbito penal. Feliciano defendeu sua tese parafraseando o jurista espanhol Baylos Grau: “Que não haja uma cidadania fora dos muros da empresa, e outra — diminuída — dentro deles”.
Para o procurador regional do trabalho, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP, Raimundo Simão de Melo, a competência penal na Justiça do Trabalho traria, como reflexos significativos à sociedade brasileira, “a esperança de acabar com a impunidade dos crimes nas relações de trabalho”. Como exemplo, ele cita “o trabalho escravo-degradante, que é apurado corriqueiramente pelo Ministério Público do Trabalho e pelo Ministério do Trabalho e Emprego e fica, na grande e esmagadora maioria dos casos, sem condenação criminal dos culpados”.
O procurador também considera que não existem as alegadas divergências de princípios entre as duas Justiças. Ele salienta que a “celeridade processual na Justiça do Trabalho é mais pretensão do que realidade. A busca da celeridade na Justiça do Trabalho passa por outras providências, como, por exemplo, a diminuição dos conflitos individuais de trabalho pela solução negociada entre as partes, com comissões prévias sérias e outros meios, e as ações coletivas preventivas e reparatórias, que evitam inúmeras ações individuais”.
Os contrários
Já entre os que se posicionam contrários ao aumento de competência, o argumento é de que a EC 45/2004 não atribuiu expressamente competência penal à Justiça do Trabalho, e por isso não é possível entendê-la “implícita” para julgamento de crimes contra a organização do trabalho. No caso do habeas corpus, o entendimento é de que não se trata de uma ação criminal, mas um remédio constitucional, e que sua aplicabilidade, ainda que legítima, é restrita e visa especialmente proteger a liberdade de locomoção, contra ato ilegal ou de abuso de poder.
Há quem defenda, também, que a Justiça do Trabalho não está familiarizada às ações criminais, e isso se explica pela divergência de foco. Enquanto a Justiça do Trabalho abarca as relações de trabalho e emprego e olha para o trabalhador e o seu acesso à Justiça como meio de garantir os direitos fundamentais do trabalhador e os valores sociais do trabalho, a Justiça Criminal, com seu caráter punitivo, tem como partes o Estado (autor das ações penais) e uma pessoa física no pólo passivo (réu). Outro ponto a destacar é a diferença processual. Na Justiça do Trabalho o processo é simplificado, com ênfase no princípio da celeridade, e visa à satisfação rápida dos direitos do trabalhador. No processo penal, ao contrário, necessariamente mais lento devido à busca da verdade real dos fatos, o norte é dado pelo princípio constitucional da presunção de inocência do réu. A decisão, nesse caso, obedece a um trâmite mais formal.
O juiz do trabalho da 2ª Região Mauro Schiavi, em seu artigo “Aspectos polêmicos da competência material da Justiça do Trabalho: Competência Penal”, afirma que, “em que pesem as boas intenções daqueles que defendem a competência criminal da Justiça do Trabalho, no nosso sentir tal competência não traria benefícios à Justiça do Trabalho e nem ao Processo do Trabalho, tampouco um maior cumprimento da legislação trabalhista, pois as vicissitudes enfrentadas pela Justiça Comum e pela Justiça Federal seriam igualmente enfrentadas pela Justiça do Trabalho”. Schiavi ainda completou que “a função da Justiça do Trabalho sempre foi o acesso do trabalhador à Justiça, o que ficaria significativamente comprometido com a competência criminal da Justiça do Trabalho”.
O magistrado, em seu artigo, destaca a posição de outros juristas, como Reginaldo Melhado, que afirma: “O litígio de natureza penal não é oriundo da relação de trabalho, nesses casos. Na configuração de um tipo penal, há um sujeito passivo formal e um sujeito passivo material, que eventualmente se podem confundir na mesma pessoa (...)”. No mesmo sentido, pensa Sérgio Pinto Martins: “Matéria criminal não será de competência da Justiça do Trabalho, pois não há disposição nesse sentido no artigo 114 da Constituição ou na Lei. A ação é proposta pelo Estado contra uma pessoa física, não se enquadrando nos incisos do artigo citado. Prevê a Súmula 115 do TFR que compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho, quando tenham por objeto a organização geral do trabalho ou direitos do trabalhadores considerados coletivamente. Se a questão é individual, a competência é da Justiça Estadual. A Súmula 165 do STJ esclarece que a Justiça Federal é competente para processar e julgar crime de falso testemunho no processo trabalhista”. Schiavi destaca ainda a posição de Carolina Tupinambá: “Sobre a competência penal da Justiça do Trabalho posicionamo-nos pela sua inexistência. A ampliação da Justiça do Trabalho não deve ilustrar uma ‘ganância interpretativa’, sob pena de acabar por letra morta. Assim, à exceção de habeas corpus nas hipóteses previstas constitucionalmente, a Justiça Obreira não tem, como nunca teve, competência para julgar crimes ou aplicar penas”.
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