Alysson Mascaro defende que "o estoque de sonhos do magistrado do trabalho é a resistência"
O professor ressaltou, durante palestra, que os novos magistrados, especialmente
os do trabalho, devem ser inspirados por uma visão mais flexível de justiça
Por Ademar Lopes Junior
A justiça e sua evolução histórica foi o foco da palestra "A função transformadora do direito como elemento de legitimação de novos valores", ministrada pelo professor Alysson Leandro Barbate Mascaro da Faculdade de Direito da USP – Largo São Francisco, na tarde de sexta-feira, 17/2, na Escola Judicial do TRT da 15ª Região. O evento, destinado à formação inicial dos 21 novos magistrados do Regional, reuniu ainda 37 servidores e estagiários, e contou com a presença do vice-diretor da Escola, desembargador Samuel Hugo Lima, e do juiz auxiliar da Vice-Corregedoria, Ricardo Regis Laraia. A Mesa de Honra foi composta pelo desembargador Samuel Hugo Lima e pelo palestrante.
O professor Alysson Mascaro, que também é professor da pós-graduação em direito político e econômico da Universidade Mackenzie, e doutor e livre-docente em filosofia do direito pela USP, iniciou a palestra com uma exposição histórica, com a representação de três tempos distintos, desde a Antiguidade grega, com os seus primeiros pensadores, atravessando a Idade Média, até chegar à atualidade, marcada pelos movimentos sociais e a luta pelos direitos humanos.
Mascaro repassou as relações de trabalho nos três tempos históricos, na Antiguidade escravagista, na Idade Média feudal e nos tempos atuais em que impera o capitalismo. O professor salientou que, diferentemente do que entende o senso comum, as relações de trabalho nos tempos antigos não foram, nem de longe, semelhantes às que conhecemos nos tempos atuais. O professor lembrou as diferenças do regime escravagista, de classes (nem sempre tão estáticas), e a do regime feudal (estamental). Nenhuma delas, no entanto, se parece com as novas relações de trabalho surgidas após a Revolução Industrial.
Se antes o homem trabalhava porque era escravo ou servo, no capitalismo, cuja estrutura social é livre, um jurista responderia, segundo Mascaro, que "uma pessoa trabalha porque quer", mas o "explorado pode, no máximo, escolher para quem vai trabalhar", acrescentou. Mascaro salientou que, no capitalismo, "o Estado é que respalda o poder", e é o Estado que diz o que é permitido nas relações de trabalho. Como exemplo, o palestrante lembrou que "não faz muito tempo, mulheres e crianças trabalhavam em fábricas mais de 14h por dia".
"Não é a dignidade do trabalho que dá o valor do salário"
As relações de trabalho, no capitalismo, se afastam da moral e regem-se por um direito específico, configurando um conjunto de instituições sociais que se aproximam do Estado. Mascaro lembrou que, para a moral burguesa, "o imoral é tudo que for de ordem sexual", e por isso, a exploração dos trabalhadores, com salários ínfimos e condições precárias de trabalho não passam pela questão moral.
Na sociedade capitalista, "o direito deixa de ser imparcial e passa a ser estrutural", lembrou Mascaro. Diferentemente do passado, das relações de escravo e senhor, e de rei e servo, o capitalismo se apresenta como uma estrutura "medianamente dinâmica", cujo poder se concentra, porém, sempre nas mãos de 3% da população.
O professor Mascaro lembrou que no passado "não se conheciam os direitos individuais", e a expressão "meu direito" só teria surgido na França em 1650 (início do direito subjetivo), quando se discutiam outros valores do ser humano, como a igualdade e a liberdade.
Em seu périplo pela história do trabalho, tendo a justiça como pano de fundo, o professor Mascaro resgatou conceitos aristotélicos de justiça e ética, cuja "régua" deveria ser mais flexível (régua de Lesbos) e medir as situações de acordo com suas características próprias. Mascaro salientou que, para Aristóteles, "a justiça é uma arte" e o julgador, para ser realmente justo, deveria se valer da equidade (justiça do caso concreto). Como exemplo, o palestrante lembrou a famosa história bíblica do rei Salomão que, diante de duas mulheres que se diziam mãe de um mesmo bebê, ordenou que se cortasse a criança com uma espada. A sabedoria do julgador hebreu conseguiu, no caso concreto, descobrir a verdadeira mãe da criança, que abriu mão de um "pedaço do filho", e assim alcançou a justiça, por meio de uma solução "artesanal".
Mascaro ressaltou que essa visão mais flexível de justiça é que deveria inspirar os novos magistrados, especialmente os do trabalho, que se encontram constantemente diante de situações de muita desigualdade social e desequilíbrio entre as partes.
Se para os antigos o homem justo era "artista", na modernidade, a justiça se faz com regras, ordenamentos, leis. Essa mudança de visão, segundo o palestrante, teve início na Idade Média, quando Deus era a resposta para todas as diferenças e pai de toda justiça. Se o rei era investido de poder pela vontade de Deus, e este era imutável, todo o poder terreno também deveria ser imutável, espelhando a vontade do próprio Deus. Assim, servos e senhores feudais jamais perdiam sua posição original. Ao contrário dos antigos, para quem "o justo não era a norma", para o homem medieval "o justo é a norma", e esse estilo de pensar impregnou os pensadores modernos como Kant.
A partir dos séculos XVII e XVIII, um novo conceito começa a se forjar nas relações de trabalho: o da liberdade negocial, que vai pautar a igualdade das partes perante a lei. Os burgueses, para quem o princípio da propriedade era um direito natural, amparados pelo direito positivo do Código de Napoleão, de 1804, vão fortalecer a "autonomia da vontade", inclusive no que se refere às relações de trabalho, que até o início do século XX vão permanecer no Código Civil.
Nos termos do liberalismo, criado pela burguesia, os contratos são regidos pela igualdade das partes, independentemente das discrepâncias de condições. Para Mascaro, essa realidade é "o tesouro da exploração do trabalho pelos burgueses".
A mudança de paradigma, que vai fomentar a discussão sobre os direitos fundamentais, só irá acontecer com as confrontações das classes trabalhadoras, das quais a Comuna de Paris, em 1848, servirá como um marco, inclusive pela restauração na França da ditadura de Napoleão III, grande defensor da propriedade privada.
O professor Mascaro ressaltou que a solução encontrada pela sociedade capitalista para salvaguardar os direitos de propriedade dos burgueses foi a criação de direitos aos trabalhadores pelo Estado. Assim, segundo Mascaro, "o direito do trabalho, desde que apareceu, é a contenção da revolução", e funciona "mantendo-se todos como sujeitos de direito, alterando-se apenas a quantidade de direitos: aos trabalhadores estende-se e ao capital restringe-se". Essa prática, na verdade, nunca agradou à burguesia, para quem esses direitos são encarados sempre como "custo" da empresa. Segundo o palestrante, "o direito do trabalho sangra no coração da lógica do capitalista porque o estoque do direito do trabalhador é maior".
A CLT é a salvação do Brasil contra a revolução dos trabalhadores
Na década de 1940, a Consolidação das Leis do Trabalho, em pleno governo ditador de Getúlio Vargas, representa mais que um avanço para a classe trabalhadora. Concomitantemente, a criação da Justiça do Trabalho resguarda os direitos do trabalhador, que não vêm dos trabalhadores nem do capital, mas do Estado.
O professor Alysson Mascaro concluiu as três horas de sua palestra lembrando aos novos magistrados que "cabe ao direito do trabalho dizer que há diferença entre as classes, que a sorte filosófica do direito do trabalho depende da sorte do trabalhador e que a grande esperança do mundo é a possibilidade de que todos sejam iguais e que o capital não ponha um contra os outros". E como num conselho aos ouvintes, Mascaro lembrou que "o estoque de sonhos do magistrado do trabalho é a resistência". Para o desembargador Samuel Hugo Lima, dirigindo-se aos novos juízes, "a palestra ajudou a encontrar nossa identidade".
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