Seminário 80 anos em 15: decisões sobre jornada de cortadores de cana e processo Shell/ Basf são analisados

Seminário 80 anos em 15: decisões sobre jornada de cortadores de cana e processo Shell/ Basf são analisados
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Dando sequência ao seminário on-line comemorativo dos 35 anos do TRT da 15ª Região, dois painéis trataram na manhã de sexta-feira, 3/12, respectivamente, das decisões paradigmáticas envolvendo a jornada dos cortadores de cana e um dos mais emblemáticos processos da história da Justiça do Trabalho, o caso Shell/ Basf. A programação inicial contou com a apresentação virtual do Coral do TRT-15, que interpretou a canção “O Bêbado e a Equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc.

Ao promover a abertura dos trabalhos do primeiro painel, o presidente da mesa,  desembargador Gerson Lacerda Pistori, prestou uma homenagem ao ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Walmir Oliveira da Costa, que faleceu este ano, vítima da covid-19.  “Eu o conheci quando era presidente da Amatra XV e Walmir presidia a mesma instituição no Pará. Tenho uma doce lembrança. Sempre nossos diálogos foram muito próximos. Ele era uma pessoa muito especial”. Presente no seminário, o filho do ministro Walmir, Elthon José Gusmão da Costa, agradeceu aos magistrados do TRT-15 e afirmou que o saber jurídico era para ele uma questão diária de trabalho, estudo e aperfeiçoamento, especialmente sobre o tema abordado no painel.

O direito do trabalho rural foi objeto de pesquisa da desembargadora Maria da Graça Bonança Barbosa no período de 2005 a 2012, quando a pujança do setor sucroalcooleiro e as condições de vida e trabalho dos cortadores de cana pautavam os jornais paulistas, e ela abordou a temática do salário por produção no XIII Congresso de Direito Rural, realizado pelo TRT-15 em Barretos. Segundo a magistrada, naquele ano, 2007, o setor era o que mais empregava, responsável por 4% do Produto Interno Bruto e esperava faturar R$ 40 bilhões. “Os trabalhadores do campo tinham carteira assinada e recebiam bons salários, mas haviam duas realidades, uma visível, a da propaganda do etanol como nova matriz energética, impulsionada pelos carros flex, e outra invisível, a da vida dos cortadores de cana”, ressaltou. 

Um fenômeno passou a ocorrer nos canaviais: a morte de jovens trabalhadores devido à jornada exaustiva (karoshi, conceito japonês que significa morrer de tanto trabalhar), ao excesso de exposição ao sol, além de outras situações degradantes. “Esse cenário evidenciava um limite perverso entre condições adversas de trabalho, salário por unidade de obra e metas de produção fixadas para usinas”. Com os avanços da biotecnologia, a cana, geneticamente modificada, passou a ficar mais leve e com casca dura, exigindo mais esforços do trabalhador, que precisava cortar 15 toneladas por dia para ganhar R$ 700,00 por mês. 

Como modificar essa realidade? Houve uma guinada no entendimento com a proposta de ações coletivas e questionamento sobre o tipo de remuneração no TRT-15. “A jurisprudência da Corte passou a ser vanguardista ao deferir horas extras aos cortadores de cana no primeiro e no segundo graus. Muitos processos foram julgados nos anos seguintes ao congresso de Barretos, ensejando que centenas de recursos fossem parar no TST”, lembrou. As decisões do TRT-15 contrariavam o entendimento do órgão superior, amparado pela Súmula 340 e pela OJ 235.

Foi em outro congresso rural do TRT-15, realizado em 2011, em Presidente Prudente, que o homenageado, ministro Walmir Oliveira da Costa, proferiu a conferência de encerramento sobre a remuneração do trabalho extraordinário do cortador de cana. Na ocasião, defendeu que a jurisprudência do TST deveria considerar a peculiaridade dessa atividade e anunciou que havia proposto ao órgão a alteração da OJ 235, ocorrida posteriormente. “Cortadores de cana não podem continuar morrendo aos 37 anos”, disse ao final daquele evento. “Essa reflexão nos mostra que dormir ou fechar os olhos para a realidade realmente não é a vocação da Justiça do Trabalho”, concluiu a desembargadora Maria da Graça.

O procurador do trabalho José Fernando Ruiz Maturana, de Bauru, discorreu sobre as principais atuações do Ministério Público do Trabalho da 15ª Região na proteção do trabalhador rural, contextualizando a situação no país. “Estamos comemorando 80 anos da Justiça do Trabalho e o trabalho rural está no mínimo 21 anos atrasado. Só foi equiparado em direitos por meio do Estatuto da Terra, de 1963, e formalmente igualado a partir da Constituição de 1988”, assinalou. 

O procurador afirmou que essa defasagem teve como consequência o trabalho informal e a baixa qualidade do sistema de proteção da saúde do trabalhador. “Dados do IBGE apontam que 68,5% dos trabalhadores rurais estavam na informalidade em 2018. No Estado de São Paulo esse dado é menor, mas ainda elevado”. Com relação ao meio ambiente do trabalho, Maturana reforçou que é necessário acabar com a mística em torno da impossibilidade da efetiva implementação de normas de saúde e segurança no meio rural. “São nesses dois pilares que o MPT tem centralizado suas ações”.

Maturana lembrou que foi em 2007 que o MPT obteve, por meio do ajuizamento de ações civis públicas, a concessão de pausas ergonômicas para a atividade de corte manual de cana e sua suspensão nos momentos mais quentes do dia nos termos da Norma Regulamentadora NR 15, anexo 3, sempre de forma remunerada. “Essas ações foram julgadas no TRT-15 e mantidas pelo TST. Foi o primeiro grande salto que nós demos para trazer mais dignidade ao trabalhador”. 

Maturana citou algumas situações investigadas pelo MPT, como em Ribeirão Preto, em que um trabalhador rural, no dia anterior à sua morte, havia cortado 24 toneladas de cana. Segundo o procurador, existe por parte do MPT um nítido escopo de tutelar pela via coletiva e materializar os direitos humanos, na acepção maior da Declaração Universal. Por fim, afirmou que o TRT-15, ao longo do tempo, sempre soube construir sua jurisprudência pautada na valorização do direito social do trabalho.

Caso Shell/ Basf: direito ambiental e princípio do poluidor pagador

Com apresentação do coordenador do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Disputas do TRT-15, desembargador Wilton Borba Canicoba, o segundo painel do dia contou com explanações da procuradora do trabalho Clarissa Schinestsck do MPT-15, autora da ACP 222/2007, conhecida como processo Shell/ Basf, e da desembargadora Maria Inês Corrêa de Cerqueira César Targa, que na época era juíza titular da 2ª Vara do Trabalho de Paulínia e proferiu a sentença.

Com a proibição pelo governo norte-americano da produção de pesticidas da família dos drins, considerados altamente tóxicos e cancerígenos, a Shell decidiu instalar no Brasil, na década de 1970, uma planta industrial vizinha ao bairro Recanto dos Pássaros em Paulínia, próximo do Rio Atibaia. Em 1994, a Shell vendeu os ativos para a multinacional Cyanamid. Por exigência da empresa compradora, a Shell contratou uma consultoria ambiental internacional, que identificou a existência de contaminação do solo e dos lençóis freáticos. “Em razão disso, a Shell apresentou uma autodenúncia ao Ministério Público do Estado se comprometendo a remediar a área e se responsabilizar por todo o passivo ambiental. Estranhamente, houve sonegação de informações”, contou a procuradora Clarissa Schinestsck.

Só em 2001 o caso ganhou destaque internacional e foi denunciado na plataforma de direitos humanos da ONU como um dos maiores desastres ambientais do país. A Cyanamid vendeu o negócio global para a Basf, que operou a fábrica por dois anos e encerrou as atividades no local. “Os trabalhadores começaram a se organizar e a tentar entender o que estava acontecendo”, explicou Clarissa. Em 2003, a área foi interditada pelo poder público municipal por oferecer riscos à saúde humana.

O MPT-15 assumiu o caso em 2005.  “Um elemento muito característico do caso Shell é a junção de mais de 12 contaminantes químicos. A ciência tinha estudos limitados quanto à extensão dos danos. Não era possível saber que doenças poderiam surgir e qual o melhor tratamento”, assinalou Clarissa. A procuradora pautou sua atuação em dois eixos. Foi estabelecido um Termo de Ajuste de Conduta com o Ministério da Saúde, o estado de São Paulo e os municípios de Paulínia e Campinas, que culminou na criação de um protocolo de atenção e vigilância à saúde das populações expostas. A iniciativa pioneira tornou-se paradigma para o SUS, que passou a adotar o modelo para casos de exposição química. 

O outro eixo foi o ajuizamento da ACP, que contou com a ajuda do grupo de trabalhadores para apuração de informações, acesso a documentos e fotos. A procuradora aplicou a teoria geral do direito ambiental em contraposição à teoria do direito civil para estruturar a ACP, ajuizada em 2007. “Acho importante fazer referência ao TRT-15, um tribunal progressista no qual os magistrados tiveram uma postura de combate, muito corajosa, porque as teses trazidas eram inovadoras, envolviam mais de 1.000 pessoas e tinham um dano moral coletivo de mais de R$ 600 milhões”, ressaltou. Nesse sentido, destacou a sentença extremamente bem fundamentada da juíza Maria Inês, que se constituiu em marco histórico da Justiça do Trabalho brasileira e do direito ambiental, com repercussão internacional. Todas as decisões foram mantidas integralmente pelo 2º grau do TRT-15.

Além da ACP 222, a Associação dos Trabalhadores Expostos à Substâncias Químicas (Atesq) e o Sindicato dos Químicos de Campinas também ajuizaram uma ação, a 684/ 2008. Os dois processos foram reunidos, instruídos e julgados pela desembargadora Maria Inês Targa. ”A primeira ação pedia reparação por dano à sociedade, porque a contaminação não havia afetado apenas os trabalhadores.  A responsabilidade era objetiva, ou seja, independia da prova de culpa. Essa ação também pedia a contratação de plano de saúde para todos os afetados e suas famílias”, explicou Maria Inês. A segunda ação, de acordo com a magistrada, pedia reparação do dano individual para todos os trabalhadores que poderiam ter a integridade física e emocional atingida pela exposição aos contaminantes. “Doentes ou não, eles tinham direito à reparação. Isso é muito relevante nesse caso”. 

A desembargadora Maria Inês elencou as principais dificuldades enfrentadas, enfatizando que as empresas insistiam em seguir o procedimento do processo civil para a tramitação do feito e não o trabalhista, pleiteando oitivas e inúmeras perícias. “Nenhuma testemunha foi ouvida e nenhuma perícia realizada. De forma bem fundamentada, demonstrei para as empresas que, das centenas de alegações, não havia nenhuma que fosse controvertida. Foram milhares de documentos acostados aos autos”, comentou. 

Pela primeira vez, a Justiça do Trabalho brasileira reconheceu um direito intergeracional, estendendo os benefícios aos filhos que poderiam ter sua genética modificada em virtude da exposição de seus pais a produtos teratogênicos (que causam anomalias e alterações congênitas). “Essa inovação foi adotada já na decisão na qual antecipei os efeitos da tutela. Nessa decisão, deferi a todos os trabalhadores e a seus filhos o direito à atenção integral à saúde enquanto viverem. Quem não nasceu pode ser ainda sujeito de direito da decisão”. 

Para a desembargadora Maria Inês, uma outra grande inovação da sentença foi a imprescritibilidade dos direitos pleiteados. “Não se pode cogitar a aplicação de prescrição quando o dano promovido é permanente, contínuo, e acarreta degradação ambiental, cujos efeitos se prolongam no tempo”, asseverou. A magistrada apontou ainda como emblemático o valor da condenação, que gerou um novo patamar de responsabilização para casos idênticos. 

Outro fato marcante, ocorrido pela primeira vez na Justiça do Trabalho, foi o de fundamentar a sentença no princípio da precaução, com base no direito ambiental: toda atividade que representa ameaça de danos ao meio ambiente ou à saúde humana exige a adoção de medidas preventivas, ainda que algumas relações de causa e efeito não estejam cientificamente estabelecidas; e no princípio do poluidor pagador: aquele que não prevenir o dano deve reparar os prejuízos por ele causados. 

O processo foi finalizado em 2013, mediante acordo firmado no Tribunal Superior do Trabalho (TST). Segundo informou  Maria Inês, o acordo já foi pago, a atenção integral à saúde dos trabalhadores e de seus descendentes está integralmente implementada e todos receberam 70% de tudo que foi deferido de dano moral individual. “Conto com muito orgulho que inclusive aqueles que tiveram seus processos julgados improcedentes - cerca de 25 pessoas, que não conseguiram vincular a doença à contaminação -, foram inseridos por mim no acordo formulado. Esse talvez tenha sido o momento mais feliz de minha vida”, finalizou.

A indenização por dano moral coletivo, superior a R$ 200 milhões, foi destinada a projetos de pesquisa e medicina, beneficiando a Associação Ilumina de Piracicaba, para a construção do Hospital de Câncer de Piracicaba e na aquisição de uma unidade móvel de atendimento; o Barco Hospital Papa Francisco na Bacia Amazônica, com atendimento a mais de mil comunidades ribeirinhas e quase 700 mil pessoas; o Centro Infantil Boldrini, para construção e aquisição de equipamentos do Instituto de Engenharia Molecular e Celular; o Hospital de Câncer de Barretos, para a construção do Instituto de Prevenção de Câncer em Campinas e mais cinco carretas; o Hospital Estadual de Sumaré, para aquisição de equipamentos de neurocirurgia; a Universidade Federal da Bahia e a Fundacentro; a Fundação de Pesquisas Médicas de Ribeirão Preto (Fupeme), para a atualização tecnológica e modernização da infraestrutura dos setores de alta complexidade da Unidade de Queimados e da Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas e da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP/USP); e, por último, a Fundação Área de Saúde de Campinas (Fascamp), para a construção do Instituto de Otorrinolaringologia de Cabeça e Pescoço, na Unicamp.

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