Abolição: o protagonismo dos escravizados em uma luta que ainda não terminou
"Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Todos respiravam felicidade, tudo era delírio". Assim relembrou alguns anos depois o escritor Machado de Assis, que participou das comemorações do fim da escravidão, no Rio de Janeiro, capital do Brasil à época. Em contraste, havia um país dilacerado, com uma ferida profunda decorrente de séculos de exploração. No 13 de maio de 1888, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, extinguindo formalmente a escravidão no Brasil. O protagonismo da data, no entanto, não foi uma ação benevolente e humanista da família real brasileira e do Senado. Tratou-se de fruto de importante participação popular, com escravizados e homens e mulheres negros livres unindo-se pela liberdade. Diante disso, é imprescindível ressaltar a resistência, a luta e a união dos escravizados como maior símbolo do abolicionismo no país.
A abolição da escravatura foi uma reivindicação que atravessou o século XIX, sendo assunto ressonante em diversos países do mundo, o que se deu também por pressão da Inglaterra, que via a prática como ameaça ao modelo de industrialização, de relações de trabalho e de mercado consumidor defendido pela maior potência econômica do período. “O Brasil foi o último país a abolir a escravidão nas Américas, após ter sido o que mais recebeu homens e mulheres vindos do continente africano, considerados propriedade privada. O país era dependente desse tipo de mão de obra, tendo o tráfico de seres humanos funcionado como motor de boa parte da economia colonial e também do Império”, assinala o presidente do Comitê para a Erradicação do Trabalho Escravo Contemporâneo, do Tráfico de Pessoas, da Discriminação de Gênero, Raça, Etnia e Promoção de Igualdade do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, desembargador Eduardo Benedito de Oliveira Zanella.
Formalmente proibidas, escravidão e exploração ainda seguem como triste realidade no mundo todo, vitimando principalmente a população pobre e negra. No Brasil, elas ainda representam uma ferida aberta, origem das desigualdades. Por isso, são fundamentais políticas afirmativas que tenham como objetivo modificar injustiças e dissolvê-las da sociedade contemporânea.
O debate sobre escravidão clama também, de modo indissociável, pela discussão sobre discriminação racial, uma vez que pesquisas apontam que são negros 82% das pessoas atualmente resgatadas de trabalho análogo à escravidão, o que requer a intervenção estatal e da sociedade civil organizada. “Apenas o combate diuturno à desigualdade impedirá que trabalhadores sejam submetidos às versões contemporâneas da escravidão”, reforça o magistrado.
A presidente do TRT-15, desembargadora Ana Amarylis Vivacqua de Oliveira Gulla destaca a atuação do Comitê, que foi criado em 2014 para promover ações de conscientização. “As iniciativas do Comitê reforçam o compromisso do Tribunal com a maior participação de grupos historicamente desfavorecidos no mercado de trabalho e com a defesa de políticas afirmativas”, salienta.
A frente de trabalho busca, sobretudo, a mobilização da sociedade, por meio da participação em projetos, como a iniciativa “Escravo, Nem Pensar”, realizada pela organização não governamental Repórter Brasil, com participação de pesquisadores e outros atores governamentais. Além disso, o comitê participa da elaboração de simpósios sobre a temática e capacita magistrados do Tribunal para identificar quaisquer vestígios de situações de trabalho análogo ao de escravo e buscar provas que exploradores sejam responsabilizados pelo Judiciário.
“Diante disso, que o“ grande sol”, relatado por Machado de Assis esteja sempre presente e, como símbolo de energia, vitalidade e esperança, seja a força motriz necessária na instrumentalização de políticas públicas para erradicar o trabalho escravo no país”, finaliza o desembargador Eduardo Zanella.
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