Caso Shell/Basf reuniu proteção socioambiental, tutela intergeracional e acordo histórico homologado no TST

Caso Shell/Basf reuniu proteção socioambiental, tutela intergeracional e acordo histórico homologado no TST
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O “caso Shell/BASF”, como ficou conhecido, é o tema de mais uma reportagem da série “Trabalho e Clima: Justiça do Trabalho e COP30”, que traz casos em que os impactos ambientais decorrentes da ação humana geraram consequências na saúde e nas vidas de milhares de pessoas e desembocaram em processos trabalhistas.

O caso teve origem na contaminação ambiental e ocupacional decorrente das atividades industriais iniciadas na década de 1970 no Recanto dos Pássaros, em Paulínia (SP). A descoberta de padrões de adoecimento, mortes precoces e exposição prolongada a substâncias altamente tóxicas mobilizou trabalhadores e familiares a reunir documentos, laudos e relatos que revelavam a extensão do dano.

Um dos primeiros a organizar esse movimento foi Antônio de Marco Rasteiro, empregado por 21 anos e fundador da ATESQ — Associação dos Trabalhadores Expostos a Substâncias Químicas. Ele lembra que o ponto de virada ocorreu quando começaram a surgir doenças recorrentes:

“A percepção de que trabalhadores estavam adoecendo e morrendo levou à organização coletiva e à formação de um movimento centrado na transparência, na defesa da vida e na luta pacífica.”

Reuniões com pesquisadores, sindicatos, órgãos públicos e entidades de saúde deram densidade técnica às denúncias, que resultaram em um inquérito civil com cerca de 60 mil folhas. “Deu muito trabalho para a Justiça, mas ela abraçou isso aí na forma da lei”, afirma Antônio.

A atuação do MPT antes da sentença

O Ministério Público do Trabalho (MPT) estruturou sua intervenção em duas frentes. A primeira buscou respostas imediatas diante da incerteza científica que cercava os sintomas relatados. “A ciência tinha estudos limitados quanto à extensão dos danos. Não era possível saber que doenças poderiam surgir e qual o melhor tratamento”, explica a procuradora Clarissa Ribeiro Schinestsck.

Isso levou à assinatura de um termo de ajustamento com o Ministério da Saúde, o Estado de São Paulo e os municípios de Paulínia e Campinas que instituiu um protocolo pioneiro de vigilância de populações expostas, depois incorporado às diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS).

A segunda frente foi a ação civil pública. Clarissa sintetiza o cenário que motivou sua propositura: “a sonegação de informações, a conduta irresponsável e negligente dessas grandes corporações transnacionais, o desrespeito ao meio ambiente, à vida e à saúde dos trabalhadores, e os danos socioambientais imensuráveis que ainda estão em curso e atingirão as gerações vindouras.”

Para ela, o caso marcou um divisor de águas ao afirmar a prevalência dos direitos fundamentais. “O caso Shell-Basf retrata um desastre ambiental de proporções alarmantes. A mais importante lição veio das respostas dadas pelo MPT e pelo Judiciário Trabalhista.”

Ela ressalta que o consenso final não apagou o caminho trilhado. “Mesmo com o encerramento do caso por acordo, as diretrizes fixadas ao longo da tramitação foram integralmente absorvidas na solução final.”

A sentença de Paulínia

Em agosto de 2010, a 2ª Vara do Trabalho de Paulínia (SP) proferiu uma decisão paradigmática em caso de contaminação química. As empresas foram condenadas a pagar R$ 1,1 bilhão, valor que englobava o dano moral coletivo, as indenizações individuais e o custeio de medidas imediatas para assegurar atendimento integral aos trabalhadores e a seus filhos nascidos durante ou após o período de exposição. 

A juíza Maria Inês Targa, hoje desembargadora aposentada, determinou a implementação imediata de assistência médica especializada, divulgação maciça para localização de beneficiários, criação e financiamento de um comitê gestor e imposição de multas diárias expressivas em caso de descumprimento.

A sentença inovou ao reconhecer que a reparação deveria alcançar não apenas os empregados diretamente expostos, mas também os filhos com potencial risco decorrente da exposição parental a substâncias teratogênicas. “Deferi a todos os trabalhadores e a seus filhos o direito à atenção integral à saúde enquanto viverem. Quem não nasceu pode ser ainda sujeito de direito da decisão”, lembra a desembargadora.

Anos mais tarde, ela destacaria a atualidade dos fundamentos utilizados. “Noto a importância das discussões decorrentes do processo e que estão alinhadas aos desafios globais que estamos vendo serem debatidos na COP-30.”
 
A atuação histórica do TST 

Após mais de seis anos de tramitação na primeira instância e no Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, o caso chegou ao Tribunal Superior do Trabalho. A ministra Delaíde Miranda Arantes assumiu a relatoria e passou a conduzir a análise das controvérsias relacionadas às obrigações de saúde e à extensão da responsabilidade socioambiental.

Em novembro de 2012, diante de manifestação das empresas indicando disposição para avançar num acordo, ela encaminhou despacho ao então presidente do TST, ministro João Oreste Dalazen, solicitando a realização de audiência de conciliação. As negociações desenvolvidas nos meses seguintes pavimentaram o caminho para a solução do litígio.

Assista reportagem do TST da época mostra a manifestação de trabalhadores e os primeiros esforços para a conciliação.

O acordo homologado no Tribunal Superior do Trabalho

Em março de 2013, os envolvidos no caso chegaram a um consenso para a minuta do acordo, homologado em 8 de abril de 2013 pelo então presidente do TST, ministro Carlos Alberto Reis de Paula, com participação da relatora, ministra Delaíde Miranda Arantes, e do então procurador-geral do Trabalho, Luís Antônio Camargo de Melo.

A conciliação reuniu a ATESQ, a ACPO (Associação de Combate aos POPs), o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias dos Ramos Químicos, Farmacêuticos, Abrasivos, Plásticos e Similares de Campinas e Região, além das empresas Raízen Combustíveis S.A., BASF S.A. e Shell Brasil Petróleo Ltda.

Na audiência, o Instituto Barão de Mauá, autor de uma das ações civis públicas contra a Shell e a BASF, tentou impedir a homologação, alegando interesse direto no desfecho. O pedido foi rejeitado, e o presidente autorizou a celebração do acordo, determinando apenas o processamento regular do agravo interposto pelo instituto.

O entendimento final garantiu atendimento vitalício a mais de mil pessoas expostas, assegurou o pagamento imediato de 70% dos valores individuais reconhecidos e destinou R$ 200 milhões a projetos de saúde, prevenção e pesquisa em diversas regiões do país.

Para Rasteiro, fundador da ATESQ, esse resultado representou a concretização de uma luta que atravessou décadas: “Nós temos esse diferencial do cuidado, o que ajuda muito a prolongar a nossa vida. Estamos conseguindo reverter o quadro de saúde e beneficiando a sociedade graças às estruturas criadas com o dano moral coletivo.”

Acesse a íntegra do acordo

Instituições beneficiadas e legado

O então procurador-geral do Trabalho, Luís Antônio Camargo de Mello, relembra dos esforços que mobilizaram advogados, procuradores e magistrados do trabalho, nas diferentes instâncias, para se alcançar a conciliação. Ele reforça que o caso virou uma referência. "Um processo como esse traz para nós essa importância do enfrentamento para que se busque uma situação que seja benéfica de proteção a trabalhadores e trabalhadoras", diz.  

Os recursos provenientes do dano moral coletivo permitiram a criação e o fortalecimento de estruturas permanentes de saúde, entre elas o Barco Hospital Papa Francisco, que atende comunidades ribeirinhas da Amazônia, o Instituto de Engenharia Molecular e Celular do Centro Infantil Boldrini, e o Instituto de Prevenção de Câncer e as cinco carretas de atendimento especializado do Hospital de Câncer de Barretos.

Também receberam investimentos o setor de neurocirurgia do Hospital Estadual de Sumaré, pesquisas da UFBA e da Fundacentro sobre exposição ao amianto e a modernização das Unidades de Queimados e de Emergência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, ligadas à Fundação de Pesquisas Médicas de Ribeirão Preto. Houve ainda apoio à construção do Instituto de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Fundação Área de Saúde de Campinas, vinculado à Unicamp.

Doze anos depois

A homologação do acordo no TST completou 12 anos em 2025. O caso Shell/Basf segue como referência nacional e internacional para debates sobre meio ambiente do trabalho e responsabilidade socioambiental. As estruturas de vigilância, prevenção e cuidado criadas a partir do acordo continuam ativas e fornecem atendimento contínuo às vítimas e às gerações seguintes.

O caso se consolidou como um dos maiores exemplos de como a Justiça do Trabalho, fiel à sua vocação conciliatória, pode transformar conflitos graves em compromissos concretos de reparação, reafirmando a dignidade humana, o interesse público e a justiça social como eixos permanentes de sua atuação.

Esta série de reportagens é um produto da Rede de Comunicação da Justiça do Trabalho
Texto: Bruno Vilar/TST com colaboração de Ana Claudia de Siqueira/TRT-15 
Apoio: Anderson Conrado
Edição: Carmem Feijó/TST
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil 

Processo: ARE-22200-28.2007.5.15.0126
 

Unidade Responsável:
Comunicação Social